Doente, sistema olímpico brasileiro precisa se reinventar para sobreviver
Demétrio Vecchioli
05/04/2019 04h00
Não foi à toa que o presidente do COB, Paulo Wanderley, disse aos presidentes de confederação, na semana passada, que a "sobrevivência" do sistema olímpico do país depende de advogados. A bolha que protegia o esporte estourou e expôs que o modelo administrativo adotado no país é inviável. Ainda que judicialmente o comitê tenha sucesso nos seus pleitos, está claro que as medidas paliativas tomadas ao longo dos anos não causam mais efeito. Uma mudança drástica de rumos é necessária, mas ninguém sabe para onde.
Era para ser assim: cada uma das 35 confederações olímpicas teria independência administrativa, financiadas por recursos próprios, privados, e também por verba pública. As necessidades básicas seriam cobertas por uma porcentagem do que a Caixa arrecada com loterias. Esse dinheiro chegaria ao COB, que o repassaria às confederações, que aplicariam os recursos seguindo a uma cartilha do próprio comitê.
Mas não é assim que tem ocorrido. Das 35 confederações, dez acordaram nesta quinta-feira (4) doentes, em um leito de hospital, impedidas de receberem esses recursos. Algumas estão lá há meses, outras estão internadas há menos tempo, acreditando que é uma doença passageira. Talvez saiam, talvez recebam novas companhias. Para muitos, o mal não tem cura.
Tomemos o handebol como exemplo. A confederação teve reprovadas as contas de um convênio de R$ 6 milhões, firmado com o Ministério do Esporte, para realizar um Mundial no Brasil. No ano passado, o então ministério determinou que ela deveria devolver quase R$ 10 milhões. Como isso não ocorreu, a CBHb foi inscrita em um cadastro de entidades impedidas de receber recursos públicos, o Cadim. Agora, o TCU determinou que quem está no Cadim não pode receber recursos da Lei Piva.
É uma equação sem solução. No buraco, o handebol não tem patrocinador privado (na verdade, nunca teve, tendo sido patrocinado por Petrobras, Banco do Brasil e Correios nos últimos anos). Sem dinheiro privado, não tem recursos para pagar o que deve. Sem pagar o que deve, não sai do Cadim e não recebe recursos da Lei Piva. A dívida, corrigida, aumenta a cada dia, até que um dia alguém assumirá publicamente: "ela é impagável".
Já vimos esse filme antes e o final é uma tragédia. A confederação de vela e motor (CBVM) deixou de pagar impostos nos anos 1990 e, em 2006, a dívida já era de mais de R$ 100 milhões. O COB realizou uma intervenção que durou seis anos e a solução encontrada foi abandonar a esmo a antiga confederação e criar uma nova, a CBVela. A Receita Federal não achou boa ideia e decidiu cobrar o COB e a CBVela pela antiga dívida, que hoje está na casa de R$ 200 milhões. Sete anos depois de ser criada, a CBVela tem uma dívida impagável.
Foram anos de má gestão, nas mais diversas modalidades. O basquete não cumpriu o que propôs em um convênio de 2008, para treinar a seleção sub-19, e o Ministério do Esporte determinou que a CBB devolva R$ 1,3 milhão. Inscrita no Cadim, a confederação não recebe dinheiro da Lei Piva. O COB paga as ações esportivas, mas não os custos administrativos. A CBB até tem patrocínios de pequeno e médio porte, e por isso não se afunda. Mas não consegue pagar nem a dívida com o Ministério, nem a dívida (reconhecida) com a Eletrobras, sua antiga patrocinadora.
Outras confederações não têm a sorte de ter um patrocinador privado, e nem têm expectativa de ter. É o caso do tiro esportivo, que precisa devolver ao governo R$ 391 mil (ainda não corrigidos) por falhas na prestação de contas de um convênio de 2010. O triatlo ficou devendo R$ 180 mil para o Ministério do Turismo, em 2006. Já o badminton teve a prestação de contas de um convênio de R$ 2,8 milhões rejeitada.
A confederação de canoagem está há duas décadas enrolada com dívidas da "época dos bingos" (quando as confederações chancelavam bingos e tiravam daí suas receitas). Em 2012, viu a justiça bloquear R$ 162 mil de uma de suas contas. Era verba de um convênio. Agora, o Ministério do Esporte cobra a devolução desse dinheiro, com correção. A dívida já passa de R$ 162 mil e a confederação não tem recursos para pagar.
No taekwondo o buraco é ainda mais fundo. A dívida com o governo, referente a um convênio que visava preparar atleta para a Rio-2016, é de mais de R$ 1,5 milhão. O antigo presidente da confederação foi condenado à prisão, um novo dirigente assumiu, mas seu cargo é apenas político, para ações voltadas ao esporte de participação. Quem cuida do taekwondo de alto-rendimento no Brasil há mais de dois anos é o COB.
A onda começou com o taekwondo e foi crescendo. Badminton, basquete, canoagem, desportos aquáticos, handebol, taekwondo, tiro esportivo, triatlo, karatê e vela… são hoje 10 confederações, de 15 esportes olímpicos, administradas pelo COB. E, ainda que os jurídicos das confederações sempre adotem discursos que defendem que "a situação será resolvida", ela nunca é. Nos bastidores, pelo contrário, é consenso: o número de entidades enroscadas vai crescer.
Em acórdão da semana passada, o TCU estipulou que quem tem dívidas com estados e municípios também não pode receber a Lei Piva. A confederação de atletismo, por exemplo, viu seu antigo presidente renunciar depois de uma denúncia de irregularidades em convênios em São Paulo. No mesmo estado, a confederação de skate está inscrita como "impedida de novos recebimentos". Se o governo federal fizer o prometido "pente-fino" nos antigos convênios do Ministério do Esporte, muito provavelmente a lista vai crescer.
A partir de sexta-feira (5), o COB encara um grande teste. Na lista de devedores da Receita por conta da antiga dívida da vela, o comitê não tem Certidão Negativa de Débito (CND) e em tese não vai conseguir renovar o certificado obrigatório para continuar recebendo recursos da Lei Piva. Trata-se de uma questão vital, para a qual o COB demonstra otimismo. Na UTI, acredita que vai sobreviver a essa cirurgia no coração. Depois, a outra: o julgamento que decide se o COB continua ou não na dívida ativa da vela, de cerca R$ 200 milhões.
Mas o comitê já não esconde, nos bastidores, que todos as demais doenças, que atingem de diversas formas as mais diversas confederações, tendem a se tornar um mal incurável. Ninguém sabe qual remédio tomar, nem é possível discutir isso publicamente, com a opinião pública, sob o risco de escancarar para o mercado de patrocínios que o movimento olímpico enfrenta tempestades. Ninguém entra em um barco prestes a afundar.
Sobre o autor
Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.
Está disponível para críticas, elogios e principalmente sugestões de pautas no demetrio.prado@gmail.com.
Sobre o blog
Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.