Viagem pessoal para Argentina derrete credibilidade da 'nova' CBDA
Eleito com um discurso de moralidade em contraponto às denúncias que enfraqueciam o veterano Coaracy Nunes, Miguel Cagnoni transformou a Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos (CBDA) em um feudo controlado por ele e pela diretora-executiva Ana Paula Alves. Documentos que circulam entre dirigentes graduados e que vêm minando o resto de credibilidade da "nova CBDA" mostram que a entidade contratou uma viagem pessoal entre presidente e sua principal funcionária.
Miguel e Ana Paula ficaram cinco dias hospedados em um mesmo quarto em Buenos Aires, onde não tinham compromissos representando a natação brasileira no feriado de 7 de Setembro do ano passado. A passagem foi emitida pela agência que presta serviços à confederação e enviada à entidade, mas não existem comprovações se foram pagas com dinheiro da CBDA. A falta de transparência na gestão impede que se descubra quem bancou o passeio.
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O Olhar Olímpico também obteve acesso a recibos de compra de passagens aéreas para uma filha e uma neta de Ana Paula, na ponte aérea SP-Rio-SP. Os bilhetes foram emitidos com o selo da CBDA e pagos pelo mesmo cartão de crédito que costuma fazer contratações de viagens para funcionários da confederação. Procurado, o presidente da CBDA não quis comentar. O atual diretor-executivo, Ricardo Prado, disse que passou os últimos 40 dias fora do país e que está se inteirando dos assuntos só agora. Ele é o último aliado de Miguel, que se elegeu unindo a "comunidade aquática" contra Coaracy.
Na semana retrasada, durante os Jogos Pan-Americanos, o Conselho de Ética do Comitê Olímpico do Brasil (COB) emitiu uma advertência pública contra a CBDA, focada principalmente na falta de transparência e nos superpoderes delegados a Ana Paula. A advertência aponta que "não há evidências que Ana Paula possua competência e qualificação profissional para atuar, de fato, como diretora administrativa e financeira ou até mesmo 'CEO' da CBDA."
O conselho relata que a própria Ana Paula aparece, em fotografia, sentada na cadeira de presidente do Conselho de Ética da CBDA em julgamento de denúncia relativa à falta de transparência na confederação. Como também é para a caixa de e-mail dela que vão todas as denúncias feitas ao conselho, até agora não houve queixa formal sobre o suposto conflito de interesses e a viagem pessoal contratada junto à empresa que atende a confederação.
Ana Paula e Miguel são próximos há anos. Ela era braço-direito dele na Federação Aquática Paulista (FAP), onde ele foi presidente. Quando Miguel elegeu-se para comandar a CBDA, em 2017, nomeou Ana Paula como diretora administrativa. Depois dos primeiros conflitos com a área financeira, o então diretor foi demitido e ela também assumiu essa função, passando a ser citada como "diretora-executiva".
Desde então é ela quem dá as cartas na entidade, no Rio, enquanto Miguel continua morando em São Paulo – ele alega que precisa precisar ficar próximo da esposa de uma vida toda, que está enferma. Os dois têm, todas as semanas, as viagens de ponte-aérea pagas pela CBDA. Além de receber um salário de R$ 22 mil, ele ainda tinha motorista no Rio contratado pela confederação. O salário foi mantido mesmo quando os repasses da Lei Piva foram suspensos e a natação entrou em profunda crise financeira – hoje a entidade está com sua sede fechada e os poucos funcionários trabalham de casa.
Cagnoni começou a ter sua imagem manchada quando seu principal fiador político, Renato Cordani, pediu demissão no fim do ano passado. Então diretor-geral, Cordani desconfiou da relação próxima entre os Miguel e Ana Paula e que a CBDA havia contratado o genro dela, por R$ 17 mil, para fazer a nova identidade visual da confederação. Ao pedir acesso aos documentos, ouviu que só os dois poderiam conhecê-los.
Cordani não só pediu demissão como levou o caso ao Conselho de Ética do COB, que julgou a denúncia ao longo dos últimos nove meses. Ana Paula se recusou a ser ouvida. Primeiro, apresentou um atestado alegando que tinha torcido o joelho. Depois disse que não aceitava falar nem por videoconferência. Não se sabe se ela continua na confederação, porque a CBDA não torna pública seus documentos nem responde à imprensa.
Em abril, a CBDA chegou a contratar um novo CEO, Leonardo Castro, prometendo a ele que Ana Paula deixaria a diretoria e ele teria autonomia para tomar decisões. Castro saiu um mês depois, reclamando de não ter tido acesso a documentos e de não poder executar suas ideias. Ana Paula, até então, não havia sido demitida. Depois disso, o medalhista olímpico Ricardo Prado assumiu as funções. Segundo ele, Ana Paula foi exonerada agora oficialmente.
Em mensagens privadas entre presidentes de federações, Miguel defende que "apenas" R$ 1,6 milhão de uma dívida total de R$ 8 milhões da CBDA com o COB dizem respeito à gestão dele. A confederação também recebeu uma multa de R$ 2 milhões dos Correios, por gestão irregular de recursos que deveriam ser utilizados em esporte e foram usados em gastos administrativos.
Contratações
Ana Paula e Miguel viajaram juntos para Buenos Aires em voo da Turkish Air no dia 3 de setembro de 2018, de classe executiva, aproveitando o feriado de Independência. Ficaram até o dia 8, hospedados em um hotel quatro estrelas de Puerto Madero, região turística da capital argentina.
As passagens e o hotel foram contratados pela LCA Viagens, empresa que presta serviços à confederação. De acordo com fontes com amplo conhecimento do caso, os bilhetes e os boletos foram enviados a e-mail corporativo de Ana Paula na CBDA. As faturas estão também no nome dela: R$ 2.860,11 em hotel e R$ 1.936,58 em passagens aéreas.
Antes, em junho de 2018, outra empresa que prestava serviços de viagens para a CBDA já havia realizado contratações ligadas a Ana Paula. No dia 18 daquele mês, emitiu duas passagens de ponte aérea para Isabella Alves Silva, filha da diretoria, e para a neta desta, que é menor de idade e por isso terá seu nome preservado.
Os comprovantes mostram que os bilhetes, que somam R$ 962,62 foram pagos com o cartão Mastercard 515590****3827. É esse mesmo cartão que consta em outras contratações feitas pela confederação, como uma ponte-aérea para o diretor jurídico Paulo Schmitt, uma semana antes.
Confederação pré-falida e fantasma
Na advertência pública divulgada na semana passada, o Conselho de Ética do COB apontou que "existe um acentuado grau de desorganização administrativa e financeira na CBDA, que indica iminência de caos" e observou um "status de pré-falência da entidade. Conforme o Conselho pôde observar, não fosse o COB ter assumido para si todas as representações internacionais da entidade e, também, o ônus organizacional de algumas de suas principais competições no Brasil, as modalidades aquáticas já teriam sucumbido e seus atletas estariam totalmente à mingua e a mercê de sua própria sorte".
Uma semana antes, Miguel chegou a responder à ligação de um repórter da revista Veja informando que havia sido afastado do cargo. Na verdade, ele estava para ser derrubado do cargo, em uma reunião convocada por presidentes de federações que desejavam sua deposição. O encontro, realizado em São Paulo no dia 31 de julho, terminou com um "comitê de crise" instaurado.
Ficou acertado na reunião que Miguel continuaria presidente, mas que as ordens seriam dadas pelo deputado estadual paraibano Ricardo Barbosa, presidente da federação de seu estado, e candidato derrotado na eleição que elegeu Miguel.
A primeira decisão desse comitê de crise foi afastar o diretor jurídico Paulo Schmitt, deixando a área jurídica da confederação nas mãos de Marcelo Jucá, também diretor jurídico, uma vez que a CBDA, quebrada, não tem dinheiro para pagar pelo serviço dos dois. Miguel se comprometeu, mas não afastou Schmitt, o que já deixou nos presidentes de federação a sensação de que ele não vai abrir mão do poder.
A CBDA também ignorou as recomendações feitas pelo Conselho de Ética do COB, incluindo as realizações de novas eleições. O COB ainda não se posicionou sobre as recomendações dirigidas ao comitê. Mas recebeu Cagnoni e Paulo Schmitt, que tem relações próximas com o diretor-jurídico do COB, Luciano Hostins. Para pessoas com conhecimento do caso, a tendência é o COB não agir.
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