ATP não reconhece carta que Brasil Open usou para ter R$ 3,9 mi do governo
Os organizadores do Brasil Open se valeram de um documento que não é reconhecido pela ATP (Associação dos Tenistas Profissionais) para receberem do Ministério do Esporte o direito de captar quase R$ 4 milhões em doações pela Lei de Incentivo ao Esporte. Na carta, que a ATP "não tem registro" de ter produzido, uma vice-presidente da entidade responsável pelo circuito mundial afirma que a organizadora do ATP 250 de São Paulo é a ASBRA (Associação Brasileira para Criação e Desenvolvimento de Modalidades Esportivas). Na verdade, porém, essa outorga é da Koch Tavares que, como empresa privada, não poderia receber incentivo fiscal. Mais do que isso: devendo quase R$ 8 milhões ao governo federal e condenada a devolver R$ 2,7 milhões à prefeitura de São Paulo, ela sequer poderia receber recursos públicos como subcontratada.
Nas últimas duas semanas, o Olhar Olímpico tentou contato com a ASBRA, sem sucesso. As perguntas enviadas nunca foram respondidas e o presidente da ONG, Marcelo Diniz, não foi localizado. Durante o Brasil Open, no Ginásio do Ibirapuera, na semana retrasada, a reportagem conversou com o diretor-comercial da Koch Tavares, que contou uma versão diferente daquela conhecida. Ele disse que a chancela da ATP era da ASBRA e que a ONG escolhia a Koch Tavares, como poderia escolher qualquer outra, para prestar serviços de promoção do evento. Segundo ele, a Koch não tinha qualquer direito sobre o torneio.
Reembre: Como Brasil Open mudou 4 vezes de dono sem sair das mãos da Koch Tavares
O Olhar Olímpico publicou esta versão dos fatos na última sexta-feira, contrastando com outras informações públicas. Mas seguiu a apuração e obteve uma cópia do documento na qual o governo foi informado supostamente pela ATP de que a ASBRA é quem organizaria o torneio, pleiteando receber quase R$ 4 milhões em incentivos fiscais. A reportagem enviou a carta, assinada por Jane Clark, vice-presidente e diretora de relações com os torneios das Américas, à ATP, que oficialmente não confirmou sua originalidade, afirmando que o direito de organizar o torneio sempre foi da Koch Tavares. Já o Ministério do Esporte confirmou que a ASBRA apresentou um documento da ATP, assinado pela vice-presidente, chancelando seus direitos sobre o Brasil Open.
Na primeira vez que foi questionada pelo UOL Esporte sobre quem é o operador local do Brasil Open, a ATP respondeu brevemente por e-mail: "Koch Tavares". Informada sobre a versão dada pela Koch à reportagem, alegou que algum tipo de acordo com a ASBRA "pode ter sido feito" pela Octagon, proprietária da data no calendário. A Octagon nega tal possibilidade e confirma tratar diretamente sempre com a Koch.
Na sequência, o Olhar Olímpico informou a ATP sobre o documento em posse do governo e a ATP explicou que "não tem registro" de tê-lo produzido. O último passo da reportagem foi enviar o documento à ATP, que, após dois dias de silêncio, não respondeu oficialmente se ele é verdadeiro. "Estamos atentos a este tema, mas sem qualquer informação adicional, não podemos fazer mais comentários", escreveu a entidade internacional.
Já a ASBRA, quando procurada pela reportagem, informou que procuraria ATP e Octagon para entender as negativas. Na sexta-feira passada, o presidente da ONG, Marcelo Diniz, até prometeu responder "assim que possível" os questionamentos do blog, mas depois não respondeu aos contatos.
Cronologia
O Brasil Open é um evento da Koch Tavares. Empresa com mais de 45 anos de mercado, criadora do beach soccer e desenvolvedora do vôlei de praia, a Koch (que desde 1978 não pertence mais ao ex-tenista Thomas Koch) formatou o Aberto do Brasil em 2001. Foram 11 edições na Costa do Sauípe, resort de luxo na Bahia, até que em 2012 ele passou a ser realizado em São Paulo, no Ginásio do Ibirapuera.
Até então, a Koch operava no Brasil em sociedade com a Octagon, gigante do marketing esportivo internacional. O modelo de parceria mudou quando a Octagon internacional decidiu encerrar sua operação no Brasil, permanecendo como proprietária da data no calendário da ATP – ela é o que a ATP chama de "ATP Tournament Class Membership". Assim, cabe à Octagon firmar um acordo com o "Local Tournament Operator", que tanto a ATP quanto a Octagon dizem ser o papel da Koch Tavares.
Duas fontes ouvidas pelo Olhar Olímpico disseram que existe um contrato entre Octagon e Koch Tavares, reforçando o que informou a ATP. Mas, quando questionada sobre esse contrato, quando ele começou e quando ele termina, a Octagon fugiu do tema. Respondeu só que a "Koch Tavares tem estado envolvida com o evento desde 2011 e continua envolvida deste então". Depois, afirmou também que a Koch "vai cuidar da infraestrutura" de novo em 2019, reforçando a existência desse acordo entre ambas.
O cuidado com as palavras se explica por que, desde 2012, com o advento da Lei Federal de Incentivo ao Esporte, a Koch sempre se apresenta como "promotora" do evento. O "organizador" – ou seja, aquele que lida com as receitas e efetua contratações – é sempre uma entidade sem fins lucrativos. Em 2015, essa ONG foi o Instituto Cidadania Através do Esporte (CAPES), que captou R$ 1,8 milhão. Em 2017 e 2018, a ASBRA.
Na versão da ATP e da Octagon, elas entregaram o Brasil Open à Koch, que contrata quem desejar para operá-lo. Na versão da Koch, apresentada ao governo, a ATP e a Octagon entregaram o Brasil Open às ONG's, que escolheram contratar a Koch para promovê-lo.
A suposta fraude
A Lei Federal de Incentivo ao Esporte, assim como a sua versão paulista, não permite que empresas apresentem projetos. Com o mercado de patrocínios recorrendo cada vez mais às doações incentivadas, essas empresas passaram a ser valer de entidades de aluguel. A ASBRA, por exemplo, só atua na organização de eventos "promovidos" pela Koch, sejam de tênis ou beach soccer. Os indícios de que ela é uma ONG de fachada vão desde o seu endereço ser dentro de uma academia da Koch até o fato de seu presidente ser um ex-funcionário da empresa. Ao menos até o sétimo dia do Brasil Open, não havia nenhum representante da "organizadora" no Ibirapuera, só da Koch.
Esse está longe de ser um caso isolado. Em outubro, o blog mostrou o caso do Desafio Raia-Rápida, evento de natação exibido todo ano pela Globo. O torneio pertencia a uma agência (Effect Sport), que o repassou a uma ONG (Instituto Faz Sport), que funciona na casa do proprietário da empresa. Soa estranho que uma empresa tenha doado um ativo, voluntariamente, para uma organização sem fins lucrativos. Mas, até aí, não há crime, desde que o torneio seja realizado estritamente como manda o plano de trabalho apresentado ao Ministério do Esporte, sem gerar lucros para a ONG ou para a empresa.
O caso do Brasil Open é diferente, porque o ativo (ou seja, o direito de organizar e ganhar dinheiro com o torneio) é chancelado por um terceiro, a ATP. E é ela quem diz a quem o Brasil Open pertence: à Octagon, que o repassa à Koch Tavares. Mesmo assim, só nos três últimos anos, duas entidades arrecadaram R$ 8,3 milhões junto ao governo federal, a título de isenção fiscal, para supostamente organizar o torneio.
O ministério alega que, para autorizar o projeto, exigiu uma série de documentos. Um deles, da ATP. E recebeu uma carta garantindo que o ATP 250 de São Paulo faz parte do calendário oficial da ATP e que "seria realizado" pela ASBRA no Ibirapuera. O documento é o exposto nessa reportagem, escrito em português e assinado por Linda Clark.
O efeito
Ao conseguir que os patrocínios/doações fossem sempre depositados nas contas da ASBRA, a Koch conseguiu movimentar valores ainda que ela, Koch, esteja impedida de receber qualquer dinheiro público. A busca por um único CNPJ da empresa aponta dívida ativa de R$ 8 milhões junto ao CADIN Federal (Cadastro Informativo de Créditos não Quitados). O mesmo CNPJ ainda aparece como devedor nos cadastros municipal e estadual (ambos de São Paulo).
Ou seja: a Koch também não poderia ser beneficiária de recursos oriundos da Lei Paulista de Incentivo ao Esporte, onde, no mês passado, a ASBRA conseguiu autorização para captar quase R$ 1 milhão para realizar dois torneios de beach soccer.
Pelo que apurou o blog, a empresa teve problemas para encontrar fornecedores para o Brasil Open. Em 2016 e 2017, prestadores de serviço ficaram sem receber, a ponto de pelo menos dois deles ameaçarem interromper o serviço e paralisar o campeonato. Nos dois casos, a Koch deu um "sinal", mas nunca pagou o restante que devia.
Na Justiça do Trabalho de São Paulo, os processos se acumulam. Nos últimos anos, a empresa foi minguando de tamanho e dispensando funcionários, que precisaram recorrer à Justiça por seus direitos. Em um dos processos, uma ex-funcionária conseguiu bloquear R$ 90 mil da bilheteria do Brasil Open, demonstrando que a ASBRA, que supostamente fica com o dinheiro, repassaria a verba à Koch Tavares. Só que como a sede da ASBRA é no Rio, só um juiz de lá poderia executar o bloqueio, o que até agora não aconteceu.
Enquanto isso, as dívidas se acumulam. O Santander ganhou uma ação de R$ 3,7 milhões contra a Koch e um de seus sócios, Luis Felipe Tavares. Já a Prefeitura de São Paulo tem a receber R$ 2,7 milhões da Koch e de um ex-secretário municipal por conta de um patrocínio irregular a um evento na Represa de Guarapiranga em 2012. A Justiça determinou o bloqueio das contas de ambos, mas não encontrou um só centavo. Por outro lado, há cinco anos, gabava-se de movimentar US$ 40 milhões por ano, como nesta entrevista à Época Negócios.
Nos últimos meses, o problema se agravou. Quem cobra a Koch sequer consegue encontrá-la. Um juiz de São Paulo intimou a empresa em três endereços, mas não a achou em nenhum deles. Seu endereço oficial, em Cotia, é apenas uma caixa postal. O Olhar Olímpico apurou, porém, que alguns poucos funcionários ainda dão expediente em um prédio da zona oeste de São Paulo, dentro do escritório da empresa de material esportivo Fila, fornecedora do Brasil Open.
Uma advogada responsável por um dos processos contra a Koch relatou ao blog a baixa expectativa de um dia receber o valor devido. Diz ela que os sócios da empresa até têm imóveis, mas que valem na casa de dezenas de milhões de reais. Levados à leilão, em momento de crise, não encontrariam compradores.
Outro lado
O blog procurou o Brasil Open por intermédio da assessoria de imprensa do evento (a mesma que também atende à Koch), enviando perguntas à ela e ao presidente da ASBRA. Marcelo Diniz prometeu retornar o contato "assim que possível", o que não aconteceu. Não foram respondidas as seguintes questões: 1) O documento apresentado ao governo foi assinado por Linda Clark? 2) Quem o escreveu? 3) De quem é a chancela do Brasil Open?
A Octagon internacional (que não tem relação com a Octagon Brasil, do ex-jogador Ronaldo) diz que "na opinião dela", como cabe à Koch Tavares lidar com os organizadores da estrutura local, seria a Koch a responsável por dar à ASBRA qualquer autorização.
Advogada da Koch, Noely Godinho alegou que as ações contra a empresa estão em andamento e o mérito de cada uma delas está sendo discutido. Ela afirmou desconhecer qualquer o bloqueio de R$ 90 mil da receita do Brasil Open e argumentou que, o fato de "em momento específico" não tenham sido encontrados recursos nas contas da Koch, não significa que "as contas estão e permanecerão zeradas". Sobre o local da sede da sede da empresa, escreveu apenas: "em Cotia e escritório em São Paulo."
"A Koch Tavares como outras empresas dos mais variados segmentos está enfrentando crise financeira em decorrência da recessão profunda que afetou o país de forma bastante contundente. Assim, vem discutindo os serviços prestados, as cobranças e principalmente os acréscimos inseridos, negociando na medida do possível o encerramento das mesmas", comentou a advogada sobre as dívidas.
A Fila não confirmou que está recebendo a Koch em seu escritório. O Grupo Dass, responsável pela gestão da marca, alegou que detêm direito de locação de espaço no prédio onde a reportagem apurou que a Koch opera, mas alegou que "os espaços disponíveis são de total responsabilidade das empresas contratantes".
O Ministério do Esporte informou que a prestação de contas do processo da ASBRA referente ao Brasil Open de 2017 ainda está aguardando análise. A ONG captou a integridade dos R$ 3,326 milhões aprovados. Em 2018, recebeu autorização para captar R$ 3,898 milhões e de fato recebeu R$ 3,255 milhões em doações. Já a ONG responsável pela captação de 2016, a CADES, prestou contas de R$ 1,8 milhões, mas a prestação também não foi analisada, ainda.
Já a Secretaria de Esporte, Lazer e Juventude do Estado de São Paulo (SELJ) informou que alugou o Ibirapuera para a ASBRA, por R$ 55 mil, com base na estimativa de arrecadação por meio das bilheterias – a estimativa, porém, não foi revelada. Além disso, cobrou 5% do montante adquirido com a comercialização de bebidas, alimentos e produtos. O balanço das vendas no espaço ainda não foi concluído, segundo a SELJ.
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