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Olhar Olímpico

Isenção fiscal para ONG em evento exibido pela Globo entra na mira da CGU

Demétrio Vecchioli

13/10/2017 04h00

    Vencedores do Raia Rápida do ano passado

Transmitido pela TV Globo, o "Desafio Raia Rápida" virou alvo de uma auditoria da Controladoria Geral da União (CGU) no ano passado, que apontou uma série de possíveis irregularidades. Basta falar que o evento deste domingo, que captou R$ 633 mil pela Lei de Incentivo ao Esporte (LIE), é na teoria organizado por uma ONG sediada no mesmo endereço da casa do proprietário de uma empresa que é, de fato, quem responde pelo torneio que envolve apenas 16 nadadores. Realizado durante uma hora, custa ao país mais do que o Troféu Maria Lenk, Campeonato Brasileiro de Natação, do qual participaram esse ano quase 300 atletas, em seis dias de competição.

Empresas não podem apresentar projetos à LIE. Apenas participam como proponentes entidades sem fins lucrativos que, depois de terem seus projetos aprovados, ficam aptas a receberem como doação parte do que empresas e pessoas físicas pagariam à União como Imposto de Renda. Na prática, é uma forma de o governo federal, por meio de isenção tributária, estimular projetos de organizações da sociedade civil, sejam elas ONGs ou mesmo confederações.

No caso do Raia Rápida, é senso comum que o evento pertence à Effect Sport. O Olhar Olímpico confirmou a informação com dois profissionais com bom trânsito em eventos do tipo. Ambos disseram conhecer bem muito o empresário Pedro Monteiro e afirmaram que quem faz o Raia Rápida é a Effect Sport. Nenhum dos dois conhecia o Instituto Faz Sport que, ao menos na documentação aprovada pelo governo, é a ONG que faz a competição – em teoria – sem fins lucrativos.

No início, não era assim. De fato, o Raia Rápida foi realizado pela Effect Sport em 2012, 2013 e 2014 sem recursos da LIE. Em 2015, porém, os direitos sobre o evento, que vende cotas salgadas de patrocínio e é exibido pela Globo na sua faixa nobre de esporte, foram transferidos a uma ONG, que passou a realizá-lo sem fins lucrativos. Questionadas ambas não explicaram como se deu tal transferência de direitos. No primeiro ano com a Faz Sport, o Raia Rápida captou R$ 380 mil graças a isenções fiscais – ou seja: dinheiro público.

Uma consulta da CGU, porém, mostrou que o sócio-administrador e fundador foi também presidente da ONG entre junho de 2013 e julho de 2016 e continuou assinando documentos como presidente mesmo depois de uma eleição eleger um novo comandante. Além disso, a CGU descobriu que, no sistema CNPJ, o endereço da ONG era o mesmo da residência do sócio-administrador e responsável pela Effect Sport. Esse empresário é Pedro Barbosa do Rego Monteiro.

Não é difícil identificar a relação entre a empresa e a ONG. Elas operam exatamente no mesmo escritório, em Botafogo, na zona Sul do Rio, o que inicialmente um diretor da ONG negou ao telefone, inclusive fornecendo falsa localização ao repórter. Segundo a "equipe do Raia Rápida", o escritório é a Effect e foi cedido à ONG. A assessoria de imprensa não respondeu qual a função da Effect Sport no evento, não revelou quem preside atualmente a ONG (só confirmou que Monteiro segue à frente da empresa), nem forneceu as planilhas oferecidas à Lei de Incentivo.

Para a CGU, há, no mínimo, conflito de interesses. "A partir do momento que o Instituto Faz Sport passou a pleitear recursos oriundos da LIE para financiar o projeto Raia Rápida, a situação passou a gerar um conflito de interesses, vez que, o projeto, exaltado pela empresa Effect Sport como um case de sucesso, que tem a pretensão de trazer lucros à empresa, passa a ser realizado por uma entidade sem fins lucrativos captando recursos no âmbito da Lei de Incentivo ao Esporte".

No ano passado, o Raia Rápida foi realizado sem captar recursos e foi exatamente isso que chamou a atenção da CGU para iniciar a investigação. A ONG solicitou autorização para captar mais de R$ 600 mil e, em meio a um misto de burocracias e "intempestividades" do setor responsável no Ministério do Esporte, a aprovação saiu na véspera do evento, atrapalhando os planos dos organizadores. Mesmo assim ele aconteceu, com patrocínio da Piraquê e mais oito "apoiadores". A ONG diz que o evento foi deficitário, mas não explicou como pagou o prejuízo.

Esses apoios, de qualquer forma, não foram informados pelo proponente no plano de trabalho do Projeto. "A ausência de informações sobre patrocínios e outros apoios recebidos para o projeto implica a captação desnecessária de recursos no âmbito da Lei de Incentivo ao Esporte, possibilitando a ocorrência de financiamento múltiplo das mesmas despesas, e eventual desvio de finalidade na aplicação dos recursos envolvidos", criticou o CGU.

No caso do evento do ano passado, isso não se configurou qualquer tipo de infração, porque, por falha de procedimentos do Ministério do Esporte, o evento aconteceu sem recursos públicos. Para 2017, a pasta aprovou a captação de R$ 633 mil. A Faz Sport afirma que a Shell doou R$ 568 mil, enquanto a Piraquê completou com mais R$ 67 mil. Apesar dos valores bastante diferentes, as duas têm espaços muitos parecidos na divulgação. Questionada, a "equipe Raia Rápida" não informou se houve um aporte adicional da Piraquê, cujo departamento de marketing não foi encontrado.

Segundo os organizadores, o evento ainda tem "pequenos apoios e produtos que cobrem custos diretos não aprovados no projeto". Mas eles não explicaram se esses custos constam na planilha enviada ao Ministério do Esporte – no ano passado, não constavam, e isso foi criticado pela CGU.

De qualquer forma, para a CGU, o Raia Rápida não deveria poder captar recursos públicos, uma vez que em 2016 comprovou poder ser realizado apenas com dinheiro privado e divulgou ter tido audiência superior a 15 milhões de telespectadores na Globo. Afinal, o artigo 24 do decreto que criou a LIE veda concessão de incentivo a eventos em "haja comprovada capacidade de atrair investimentos, independente dos incentivos fiscais".

Na auditoria, a CGU critica o parecer técnico elaborado pelo Departamento de Fomento e Incentivo ao Esporte, que "deveria ter considerado essas situações, baseando suas análises, também, em pesquisas realizadas e não exclusivamente em informações declaratórias apresentadas pelo proponente". O Ministério do Esporte respondeu à CGU que os cortes orçamentários vinha atrapalhando as fiscalizações.

A CGU não identificou, mas o caso do Raia Rápida não é único. A ONG Faz Sport e a empresa Effect Sport ainda se misturam na organização do Rei e Rainha do Mar, evento também patrocinado pela Piraquê e aprovado pela Lei de Incentivo ao Esporte. Até o ano passado, a ONG já havia captado, só pela lei federal, mais de R$ 4 milhões.

Os dados não podem ser atualizados porque o mecanismo de consulta pública do Ministério do Esporte não é atualizado desde maio e vem apresentando falhas desde o ano passado. Mesmo buscando por "Instituto Faz Sport", "Raia Rápida" ou mesmo pelo número do processo, o sistema não revela a aprovação dos projetos da ONG, que podem ser consultados – a aprovação, não a captação – pelo Diário Oficial da União.

Outro lado – O blog perguntou à Globo de quem ela compra os direitos de transmissão do Raia Rápida. A emissora respondeu apenas que "detém a cessão gratuita dos direitos de transmissão do Raia Rápida, decisão de caráter editorial". Ou seja: os custos de transmissão não fazem parte do escopo da ONG, ou da Effect.

A Shell também não respondeu com quem ela tratou a respeito do patrocínio ao Raia Rápida, se com a ONG ou a empresa. Não informou quanto doou e resumiu que "seguiu todos os trâmites legais". A Piraquê não foi encontrada e não retornou os e-mails enviados.

A "equipe Raia Rápida", em longa mensagem enviada ao blog, ressaltou que seu trabalho depende "da confiança dos patrocinadores". No entender dos organizadores, o relatório da CGU não aponta ilegalidades com relação ao Instituto. Apesar de não responder cinco das oito peguntas enviadas pela reportagem, eles fizeram questão de exaltar o trabalho social da ONG, premiada por um projeto de reinserção de jovens infratores na sociedade.

Os organizadores lembraram que pagam R$ 120 mil em dinheiro para atrair os melhores atletas nacionais e internacionais e que arcam que custos de transporte internacional e estadia dos competidores – neste ano, há equipes dos EUA, da Itália e da Argentina, além de Etiene Medeiros, Bruno Fratus, João Luiz Gomes Jr e Daynara de Paula pelo Brasil.

"Estão sendo seguidos todos os processos legais para a utilização dos recursos captados, sendo que todas as despesas realizadas serão minuciosamente descritas e comprovadas na respectiva prestação de contas, como exigem os projetos da LIE.", ressaltam os organizadores. Já o Ministério do Esporte não respondeu se levou em consideração as recomendações da CGU. A CGU, por fim, preferiu não comentar.

Sobre o autor

Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.

Está disponível para críticas, elogios e principalmente sugestões de pautas no demetrio.prado@gmail.com.

Sobre o blog

Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.