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Sem Lei Piva, esporte olímpico pode sofrer apagão a partir de abril

Demétrio Vecchioli

29/03/2019 04h00

Paulo Wanderley, presidente do COB, e general Marco Aurélio Vieira, secretário especial de Esporte

O esporte olímpico brasileiro está na iminência de um apagão. No próximo dia 5 de abril, sexta-feira, vence a certificação que permite ao Comitê Olímpico do Brasil (COB) receber recursos da Lei Agnelo/Piva (LAP). Devendo mais de R$ 190 milhões em impostos – no entender da Receita Federal – o COB não tem os requisitos para renovar o certificado. Sem este, não pode receber dinheiro público, segundo o governo. Sem recebê-lo, também não pode repassá-lo às confederações. A previsão para 2019 é que o COB tenha direito a R$ 250 milhões pela LAP, dos quais repassaria R$ 109 milhões às confederações.

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Ao menos até a tarde de quinta-feira (28), os presidentes das confederações, que têm na Lei Piva sua principal fonte de recursos, não sabiam desse risco. Quando questionado, o COB apresenta um entendimento jurídico que refuta a possibilidade de não acessar a Lei Piva. A questão é que quem dita as regras é a Secretaria Especial de Esporte, antigo Ministério do Esporte, que diz que, sem certificado, o COB não receberá repasses.

"As entidades que não têm a Certidão Negativa de Débito (CND) estão impedidas de receber a certificação pelo cumprimento das exigências formais previstas nos artigos 18 e 18-A da Lei nº 9.615/1998 [Lei Pelé]. Essa certificação é expedida pela Secretaria Especial do Esporte do Ministério da Cidadania. Sem a certificação, as instituições não podem firmar convênios com a pasta nem receber repasses da Lei Agnelo/Piva", disse a secretaria em nota, após questionamento do Olhar Olímpico especificamente sobre a situação do COB, que não tem previsão de conseguir a CND.

O imbróglio vem sendo mantido longe do conhecimento de atletas e de dirigentes esportivos, todos diretamente interessados. O COB demonstra tranquilidade, dizendo que não acredita que os repasses sejam suspensos e que um ato desse tipo seria "arbitrário e ilegal, ameaçando os projetos mantidos com tais recursos, prejudicando assim a preparação dos atletas brasileiros".

Trata-se de um conflito de interpretações. A Secretaria Especial de Esporte é o ente responsável por certificar quem pode e quem não pode receber recursos públicos e por avisar a Caixa Econômica Federal a respeito de quem não pode. Consta no Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) assinado pelo COB e pelo Ministério do Esporte no fim de 2017: "A Caixa será comunicada da não certificação da entidade e o consequente descumprimento das exigências legais para o recebimento de verbas públicas". O COB argumenta que o dinheiro da Lei Agnelo/Piva não é uma "verba pública".

Não é o que pensa o TCU, que no Acórdão 3149/2016, escreveu: "O COB se mantém quase que exclusivamente com os recursos recebidos da Lei Agnelo/Piva, portanto, verba pública". A interpretação do COB vem do fato de o dinheiro ser arrecadado pela Caixa a partir da venda de bilhetes lotéricos e repassado diretamente para o COB sem passar pela União.

Ainda na avaliação do COB, o repasse da Lei Piva ao comitê não é regido pela Lei Pelé, sendo mandatório, independente de o COB cumprir ou não os requisitos da Lei Pelé. E que essa tese foi corroborada pelo TCU, que reconheceu que o COB não deveria ter tido os repasses suspensos no ano passado quando teve seu nome incluído no Cadastro de Entidades Privadas Sem Fins Lucrativos Impedidas (Cepim).

O Olhar Olímpico consultou especialistas, que refutam essa interpretação. Para eles, sempre foi claro que o COB deveria cumprir o que manda a Lei Pelé, o que inclui a exigência de a entidade estar "em situação regular com suas obrigações fiscais e trabalhistas". A inclusão no Cepim era relativa a não devolução de recursos glosados em convênio firmado no passado com o Ministério do Esporte. Era uma dívida, mas não não uma irregularidade no cumprimento de obrigações fiscais, como agora.

Uma pessoa com conhecimento do caso, que não quer ser identificada, aponta que o COB sabe pelo menos desde 2017 da possibilidade de ser inscrito como devedor na Receita Federal e que não tomou nenhuma medida até agora para evitar um grande estrago. "Eles vêm se apoiando na interpretação de que o dinheiro da Lei Piva é um dinheiro privado. Foi esse entendimento que afundou o COB no buraco. Ao menos em dois acórdãos o TCU bateu nessa interpretação. O COB está sendo irresponsável", critica.

Em novembro do ano passado, o COB chegou a ficar sem repasses da Lei Piva, mas por um dia, apenas. Sabendo das consequências do bloqueio do repasse, o comitê preferiu pagar R$ 2,5 milhões ao Ministério do Esporte e quitar uma dívida que não reconhecia e na qual tinha certeza que obteria vitória no TCU – como de fato ocorreu. Agora, porém, não há como sequer negociar o parcelamento de uma dívida de R$ 191 milhões.

Entenda a dívida

Como mostrou o Olhar Olímpico na terça-feira, a Receita Federal incluiu o COB e a Confederação Brasileira de Vela (CBVela) no polo passivo de uma dívida de mais de R$ 191 milhões (números de abril de 2017) da Confederação Brasileira de Vela e Motor (CBVM). A dívida vem da década de 1990, quando a CBVM chancelava o Bingo Augusta, em São Paulo, que deixou de recolher impostos.

Em 2007, o COB iniciou uma intervenção na CBVM, encerrada no fim de 2012, quando uma nova entidade, a CBVela, foi criada e solicitou ao COB e à federação internacional de vela para ser a confederação oficial de vela no Brasil.

Para a Receita, o COB é um dos responsáveis pelas dívidas da CBVM, assim como a CBVela, sua herdeira, porque foi criada pelas mesmas entidades que antes compunham a assembleia da antiga confederação – entre elas as federações paulista e fluminense, também incluídas no polo passivo.

Atualmente, 10 processos de execução fiscal correm contra a CBVela – a maioria deles, também contra o COB. O comitê já foi executado duas vezes. Entregou um imóvel como garantia em um e teve bloqueados R$ 500 mil em outro. No processo que está mais adiantado, no Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2), o COB vem sendo derrotado.

A Terceira Turma Especializada começou a julgar na semana passada recurso do COB para deixar o polo passivo de um dos processos, que cobra R$ 53 milhões. O relator votou contra (para o COB ser mantido como réu) e a votação foi paralisada para um pedido de vistas. Agora, o comitê precisa de dois votos favoráveis, mas o julgamento só deve ter continuidade no fim do mês.

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Sobre o autor

Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.

Está disponível para críticas, elogios e principalmente sugestões de pautas no demetrio.prado@gmail.com.

Sobre o blog

Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.


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