Como dinheiro transformou Fernando Lopes de formador a técnico de seleção
Demétrio Vecchioli
02/05/2018 04h00
(reprodução/Instagram)
A montagem de um centro de treinamento com dinheiro do Ministério do Esporte e da Confederação Brasileira de Ginástica (CBG), o patrocínio da Caixa e um investimento anual extra de quase R$ 300 mil por parte da prefeitura de São Bernardo do Campo. Uma série de fatores externos transformaram Fernando de Carvalho Lopes, até então um talentoso descobridor de talentos, em membro da comissão técnica da seleção brasileira de ginástica artística, em 2014. Graças à injeção de recursos para uma equipe forte em um CT estruturado, Diego Hypolito foi contratado e Fernando, como seu técnico, passou a trabalhar também para a Confederação Brasileira de Ginástica (CBG). Foi afastado em julho de 2016, na véspera da Olimpíada, quando surgiu a primeira denúncia contra ele.
Esportivamente, à parte das acusações de abuso sexual, a carreira de Fernando pode ser dividida entre antes e depois de a prefeitura de São Bernardo aceitar financiar uma equipe de alto-rendimento, criada para ter ele como treinador-chefe. Isso aconteceu em meados de 2014, cerca de um ano depois de o Flamengo decidir não manter mais o seu time, que no masculino tinha Pétrix Barbosa, Diego Hypolito, Sergio Sasaki e Caio Souza.
Quatro atletas de nível de seleção desempregados, dinheiro à disposição, vontade política, patrocinador forte, centro de treinamento estruturado. Tudo conspirava a favor, não fosse uma condição: para aceitar o convite de São Bernardo, os quatro precisavam deixar para trás o técnico Renato Araújo. Se no passado Diego chegou a avisar que não disputaria um Mundial se Renato não fosse junto, em 2014 ele topou o rompimento. Em troca de estabilidade financeira, passaria a ser atleta de Fernando em São Bernardo. Levou com ele o amigo Caio Souza. Pétrix e Sasaki, que já conheciam bem o treinador, preferiram continuar na fila do INSS.
Como técnico de Diego e Caio, Fernando chegou à seleção em 2014. Em julho de 2016, a um mês da Olimpíada, foi afastado depois de a CBG ser informada de que corria em segredo de Justiça uma denúncia de abuso sexual contra ele. No último domingo, o Fantástico exibiu reportagem na qual ouviu relatos de mais de 40 atletas que também dizem ser vítimas de Fernando. Os casos teriam ocorrido enquanto ele treinava a equipe do Mesc, sendo o mais recente deles em 2016, já com Fernando trabalhando na seleção.
A estrutura
A equipe de São Bernardo, que só teve um ginasta mediano no Campeonato Brasileiro de 2013, teria uma estrutura invejável. Ainda em 2009, a prefeitura, comandada por Luiz Marinho (PT), hoje pré-candidato petista ao Governo do Estado, adquiriu o antigo Clube da Volks, na Vila Tanque, na zona Leste da cidade. Com verbas federais, conseguidas junto ao então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que construiu sua história política na cidade, ergueu um estádio de atletismo, que depois ganhou o nome de Arena Caixa e passou a ser o mais importante do país. O dinheiro da união, num total de R$ 31,5 milhões, também colocou de pé um ginásio anexo que se tornou o centro de treinamento da Confederação Brasileira de Handebol (CBHb).
Mas também havia um galpão abandonado, no qual a prefeitura resolveu mexer. Gastou R$ 1,25 milhão na reforma, incluindo reparos no telhado, troca do piso, reforma dos vestiários e construção de fossos para instalação dos aparelhos. Entregou a estrutura para um CT de bom nível, em área arborizada e tranquila. Os equipamentos também já estavam garantidos.
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Um convênio de R$ 7,2 milhões firmado em 2010 pelo Ministério do Esporte e a CBG permitiu a compra de mais de mil itens para a criação de 13 centros de treinamento das três disciplinas da ginástica, sendo um único centro nacional de ginástica artística masculina, exatamente este em São Bernardo. Em 18 de junho de 2014 a presidente da CBG, Luciene Resende, determinou que os aparelhos começassem a serem distribuídos e instalados. A cidade dos metalúrgicos teria a melhor infraestrutura possível. Para não deixar tudo aquilo ocioso, era preciso contratar atletas.
Os atletas
Pétrix e Sasaki são crias de São Bernardo. Foram descobertos e lapidados por Fernando no Mesc (Movimento de Expansão Social Católica), um clube social que ocupa área equivalente a um quarteirão na zona Oeste da cidade. Ambos deixaram o Mesc ainda no começo da adolescência, para treinar no Flamengo, e foram convidados a voltar com a condição que passassem a trabalhar com um novo treinador – mudança rara e radical na vida de um ginasta.
Precisariam deixar para trás o técnico Renato Araújo, que também havia sido demitido pelo Flamengo e rumado com eles para São Paulo, onde todos treinavam de favor no Pinheiros. Utilizavam a ótima estrutura do clube paulistano, mas sem vínculo formal ou financeiro. Estavam todos desempregados. Diego e Caio toparam o novo emprego, Petrix e Sasaki não.
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Em entrevista ao Globo Esporte, Petrix explicou os motivos. "Eu nunca treinaria com ele (Fernando) novamente. Mas não podia explicar os motivos reais da minha decisão. Mais uma vez tive que sofrer sozinho, mas continuei firme com o meu objetivo. Diego e Caio aceitaram, eu não tinha como fazer isso", contou. Sassaki não foi localizado pela reportagem para dar sua versão. Eles continuaram fieis a Renato e só foram encontrar uma camisa para vestir faltando um mês para a Olimpíada. Foram atletas de aluguel do Vasco.
Dinheiro
A contratação de Diego e Caio só foi possível graças a um investimento da prefeitura de São Bernardo do Campo e a um patrocínio da Caixa, que desde o início do projeto é patrocinadora do time. Quando já era certo que a cidade receberia os equipamentos da CBG, em 5 de junho de 2014 o governo municipal assinou convênio de R$ 848 mil para manter por nove meses as equipes de ginástica e atletismo da Associação Sambernardense de Atletismo, conhecida pela sigla ASA.
Diego seria apresentado dali a três semanas, ao lado de Luiz Marinho. Em julho, disputou o Campeonato Brasileiro por uma equipe que na súmula da competição aparece nomeada como "ASA/Mesc São Bernardo", ainda que os dois sejam clubes distintos. O usual é que esse tipo de dobradinha ocorra porque um deles não tem acesso a verbas públicas – por exemplo, porque não cumpre todas as obrigações legais. Neste caso, um clube de atletismo recebia o dinheiro e quem competia era o time do Mesc, comandado por Fernando, que inclusive treinava lá enquanto o novo CT não era entregue.
A dobradinha não era nova. O ASA já era financiado pela prefeitura de São Bernardo para manter uma equipe de ginástica. Em 2013, por exemplo, recebeu R$ 100 mil. Em 2014 seria assim também, não fosse o novo contrato assinado no meio do ano. Em 2015 o convênio foi renovado, para mais R$ 728 mil, por 11 meses. Paralelamente, a Caixa, patrocinadora oficial da CBG, renovava convênio para dar seu nome ao CT, inaugurado em novembro de 2014 já como Arena Caixa.
Novo clube
No meio do caminho, em agosto de 2015, o CNPJ beneficiado pela prefeitura mudou, sem que mudassem os atletas ou o treinador-chefe. O clube de ginástica da cidade deixou de ser o ASA e passou a ser a Associação Desportiva e Cultural São Bernardo. Conhecida como ADC São Bernardo, não é um clube social, mas uma espécie de ONG que já representou a cidade em campeonatos como o Liga Futsal e a Superliga Masculina (é o CNPJ da ADC que usa o nome fantasia "Corinthians/Guarulhos").
De cara, o ADC firmou convênio de R$ 400 mil, por 16 meses, para "implantar, desenvolver e manter equipe de ginástica e administrar e manter centro de ginástica". No Campeonato Brasileiro daquele ano, Diego já competiu pelo ADC São Bernardo, que atualmente é o único clube da cidade filiado à Federação Paulista de Ginástica.
Ainda durante a Olimpíada, a quatro meses do fim do contrato, um novo termo foi firmado. Desta vez, R$ 450 mil, por 10 meses. Ao longo de 2018 o projeto vai custar outros R$ 250 mil aos cofres municipais. Isso significa que, de 2013 para cá, a prefeitura de São Bernardo gastou até R$ 2,7 milhões com a equipe de ginástica projetada por Fernando, dos quais cerca de R$ 1,5 milhão foram divididos com o atletismo – não existem subsídios para detalhar quanto.
Sobre o autor
Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.
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Sobre o blog
Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.