CBAt usou nomes de atletas para forjar nota e justificar gasto inexistente
Demétrio Vecchioli
20/12/2017 04h00
Toninho Fernandes. (Divulgação/CBAt)
O Olhar Olímpico encontrou indícios consistentes de que a Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt) apresentou notas frias à Secretaria de Esporte, Lazer e Juventude (SELJ) do Estado de São Paulo para justificar gastos com hospedagens, arbitragem e premiação de campeonatos realizados com verbas públicas. Em um dos casos, a confederação listou 370 atletas que ela teria hospedado por R$ 550 mil durante uma competição, mas mais de 120 deles negam que tenham recebido o benefício – é provável que ninguém tenha se hospedado. Há ainda compra de mais do triplo de medalhas do que o número de atletas no pódio e locação de 10 ônibus para cumprirem um trajeto de 10 minutos andando. Além disso, empresas de fachada foram contratadas para terceirizar serviços de arbitragem, ainda que os árbitros recebessem diretamente da CBAt.
Em 2014, quando o secretário de esporte do governo do Estado era José Aurichio (PTB), prefeito de São Caetano do Sul entre 2005 e 2012 e novamente a partir deste ano, a CBAt conseguiu R$ 5,7 milhões para realizar quatro eventos. A entidade já era presidida por Toninho Fernandes, ex-presidente da Federação Paulista de Atletismo (FPA). Ele havia deixado o cargo em 2012 para seu então vice, Mauro Chekin, ex-secretário de esportes de Aurichio em São Caetano.
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Foi nesse cenário que Toninho conseguiu verbas para quatro competições em 2014: o Troféu Brasil (equivalente ao campeonato brasileiro, dura quatro dias), o GP São Paulo (evento de uma manhã, com 20 provas e atletas convidados), o Ibero-Americano (competição internacional, também de quatro dias) e o Brasileiro Sub-23 (mesmo modelo do Troféu Brasil). A reportagem acessou os processos na sede da SELJ, no centro de São Paulo, no mês passado, após pedido via Lei de Acesso à Informação.
Em todos eles, duas empresas ficaram com a maior parte dos recursos, como subcontratadas. A Tomhara Tur agenciou hospedagem e transporte aéreo, enquanto a Personal Vans locou vans e ônibus. A Rumo Certo e Anjy, empresas de fachada protagonistas de reportagem publicada na segunda-feira, também foram contratadas para diversos serviços.
Hospedagem
Em 24 de outubro de 2014, a Tomhara emitiu uma fatura cobrando R$ 550 mil da CBAt para planejar, organizar e administrar hospedagem em São Paulo, "padrão internacional", para árbitros, atletas e equipe técnica do Troféu Brasil, incluindo café da manhã, almoço e jantar, para 370 pessoas, durante cinco dias, ao custo unitário de R$ 300. Levou o dinheiro e entregou um recibo manual, curiosamente de número 1.171, confirmando o recebimento.
Complementar a esses documentos, como forma de comprovar o serviço, entregou uma lista com 370 nomes, os quais garante ter hospedado e alimentado durante aquela competição. Na sua prestação de contas à SELJ, a CBAt entregou essa lista, também de forma a comprovar que o dinheiro recebido e gasto, foi de fato aplicado. Fotografadas diretamente no processo, as páginas com os nomes dos atletas estão no final desta reportagem.
O que a SELJ não fez, o Olhar Olímpico fez: procurou esses atletas para checar se a informação é verdadeira. A lista foi compartilhada e pulverizada pelo Whatsapp. Em três dias, o blog recebeu exatas 81 mensagens, oito e-mails e quatro ligações. De atletas (grande maioria), treinadores e dirigentes. Falando deles e de terceiros. Absolutamente todos negaram que tenham recebido qualquer benefício durante o Troféu Brasil. A lista entregue pela CBAt na prestação, afinal de contas, é provavelmente falsa. Os R$ 550 mil, ao que tudo indica, jamais foram gastos com hospedagem de atletas.
Antes da confirmação de um número expressivos de atletas – somadas, as mensagens representam negativa de mais de metade dos que aparecem na lista -, os indícios já eram fortes. A começar pelo fato de o Troféu Brasil ser uma competição interclubes, o que joga no colo dos clubes a responsabilidade por seus atletas. Historicamente, ao menos nas últimas décadas, a CBAt não ajuda financeiramente.
E em 2014 foi assim. A lista de atletas que a CBAt alega ter hospedado tem pelo menos 20 atletas que sequer competiram no Troféu Brasil. Uma chefe de equipe contou que seus comandados precisaram ficar num "motel pulgueiro" na Brigadeiro Luis Antônio para poderem competir. Um corredor hospedou oito colegas. Muitos ficaram na casa de parentes, outros até se hospedaram em hotéis confortáveis, mas bancados pelo clube ou pelas prefeituras. Parte expressiva deles morava em cidades próximas e se deslocaram diariamente até o Estádio do Ibirapuera.
"O meu clube teve que fazer vaquinha para que a gente pudesse ir para essa competição", contou um atleta de Santa Catarina. "Nós fizemos uma rifa para ter dinheiro para todo mundo", revelou outro, do Rio. "A prefeitura foi quem pagou, tenho certeza", disse um terceiro, do interior. Muitos se colocaram à disposição para apresentar recibos de que pagaram pela própria hospedagem.
Em todos os casos, a CBAt tinha dinheiro para hospedá-los, pagou por isso, mas não o fez. Agora, corre o risco de, além de ter que devolver o dinheiro ao Governo do Estado, responder judicialmente – um grande grupo de atletas, que recebeu a lista pelas redes sociais, já se mobiliza para uma ação conjunta.
Hospedou mesmo?
Em outras ocasiões em 2014, a CBAt de fato utilizou verbas da SELJ para hospedar atletas. Em agosto, a Tomhara já havia recebido R$ 792 mil para hospedar 660 pessoas, sendo 500 atletas, durante quatro dias no Hotel Pestana. A competição, o Campeonato Ibero-Americano, contou, segundo seu site oficial, com apenas 349 inscritos e a nota de débito da Tomhara informa que apenas o nome de apenas 142 deles, hospedados entre 28 de julho e 4 de agosto – o torneio aconteceu nos dias 1, 2 e 3. A CBAt nega que o contrato fosse para 500 atletas, como consta na planilha que você pode ver aqui e também no orçamento que está aqui.
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O Pestana fica a 10 minutos a pé Estádio do Ibirapuera, em um caminho dos mais seguros – há um quartel do exército do outro lado da calçada. A CBAt, porém, preferiu evitar a fadiga dos atletas e colocou 10 ônibus a serviço deles. Emparelhados, os ônibus já preencheriam a distância de um ponto a outro. Como comparação, no Mundial de Atletismo deste ano, em Londres, com mais de 2 mil atletas, havia ônibus para os atletas a cada 15 minutos, mais ou menos. No Ibero, havia menos de 500 atletas.
Outra situação em que a CBAt pagou hospedagem foi Brasileiro Sub-23 daquele ano, no início de setembro, em São Paulo. A CBAt pagou R$ 640 mil por quatro diárias para para 520 pessoas, mas não informou nominalmente à SELJ quem ela hospedou. A empresa contratada foi a mesma, a Tomhara, que não respondeu às perguntas da reportagem.
Pra que tanto?
Financiada pela SELJ, a CBAt apresentou diversas vezes números inflados. No GP Internacional São Paulo, competição que durou exatas três horas e contou com 156 atletas, apenas, ela contratou alimentação para 80 árbitros (65 trabalham em uma competição), 45 pessoas de "comissão técnica", 60 pessoas do "administrativo", 40 do "apoio", 30 do "comitê organizador" e 40 de "equipe técnica" (tudo aparece aqui). Só de staff, mais de 200 pessoas, número muito além do que se vê em competições da entidade, que este repórter frequenta com assiduidade – nesta, especificamente, não estive presente.
Com recursos estaduais, Toninho Fernandes também financiou a viagem de 20 presidentes de federações até São Paulo, para um evento que nem era o principal daquela semana – até 2014, o Brasil organizava três Grand Prix em sequência, começando em Uberlândia, passando por São Paulo e culminando com o GP Brasil em Belém. Aliás, o governo paulista pagou R$ 375 mil em viagens aéreas para que todo mundo viesse de Minas e fosse ao Pará.
O superfaturamento, porém, fica claro que se observa os números relativos a premiações. O GP São Paulo teve 20 provas, apenas, nenhuma de revezamento. A conta é simples: 60 pessoas foram ao pódio. Mesmo assim, a CBAt comprou 200 medalhas (que custaram R$ 150 cada) e 50 troféus (R$ 250). (A planilha está aqui) Não é segredo para ninguém que competições de atletismo não entregam troféus. A foto abaixo deixa claro que, no GP São Paulo de 2014, também não houve troféu. A CBAt não explicou onde estão as medalhas excedentes, nem os troféus que nunca foram entregues.
Reprodução/MM Atletismo
Arbitragem
Nas planilhas das quatro competições bancadas pela SELJ não consta o item "arbitragem". Isso não significa que o governo estadual não tenha pago o serviço. Afinal, fica implícito que a CBAt terceirizou a arbitragem para a Rumo Certo Eventos Esportivos, que ganhava os contratos de "organização". As funções eram: "Acompanhar todas as atividades e produção do evento, assessorando a coordenação geral da competição, quanto a aferição e controle do atendimentos aos protocolos internacionais da provas, das entregas dos prestadores de serviço, bem como garantir pela logística interna nas dependências da pista de atletismo e o atendimento das demandas dos atletas". Só quem pode pisar na pista de atletismo são atletas e árbitros.
Para o GP São Paulo de 2014, por exemplo, a CBAt contratou a MJ Vilar por R$ 300 mil para fazer esse serviço em um evento de apenas três horas. A MJ pertence aos irmãos Maria José e Fernando Ameneiro Couto, que comandam duas ONGs (FEPLAM e Instituto Mais Esporte) que realizam eventos de lutas marciais com recursos estaduais e municipais. Este ano, Majó, como é conhecida, pediu para cancelar dois convênios com a prefeitura de São Paulo porque o primeiro evento que realizou teve fiscalização demais – a reportagem ouviu o áudio que ela enviou a um funcionário da secretaria municipal.
No Troféu Brasil, que durou quatro dias, o mesmo serviço foi contratado pela metade do preço daquele de um dia: R$ 150 mil, junto à Rumo Certo. À época, a CBAt pagava de R$ 70 a R$ 140 por período para os 65 árbitros contratados. Ainda que remunerasse todos pelo teto, teria gasto R$ 73 mil.
Em nota ao blog, a Associação Paulista de Árbitros de Atletismo assegurou que os árbitros que prestam serviços de arbitragem nos eventos de atletismo da confederação e da federação, recebem seus valores de "ajuda de custo" diretamente das referidas instituições. Apenas entre 2012 e 2013, segundo a APAA, eles receberam alguns pagamentos em nome da Anjy. Nos eventos da CBAt de 2014, os árbitros consultados pela direção da APAA sempre receberam diretamente da confederação.
Notas frias
Não é só a contratação da Rumo Certo que chama atenção. Assim como a Federação Paulista de Futebol (FPF), em denúncia feita pelo UOL que gerou investigação da Polícia Civil e do Ministério Público, a CBAt também cotou serviços com empresas de outras áreas.
A Victrine Comunicação e Marketing, cadastrada na Junta Comercial de São Paulo para produzir fotografias, apresentou orçamentos para fiscalizar o cumprimento das normas técnicas de padrão internacional do atletismo – papel que cabe, claro, à CBAt – e para organizar o GP São Paulo de Atletismo. A Berserkt, uma agência de publicidade, fez o mesmo. A Rumo Certo levou a conta, por R$ 450 mil.
Proprietário de uma empresa de organização de eventos esportivos, a Portbras, em convênios da Federação Paulista de Judô (FPJ), Toninho Fernandes entrou em tomadas de preço das quais também participaram a Rumo Certo e a Anjy, outra empresa do mesmo proprietário.
O que eles dizem
Confederação Brasileira de Atletismo
Sobre as nota que listou os atletas que foram hospedados para o Troféu Brasil, complementar à fatura emitida pela Tomhara, a CBAt alegou que "a ficha de cada atleta é encaminhada pela sua respectiva delegação e que, a partir desses dados, efetiva a reserva de hospedagem" e culpou os "responsáveis de cada delegação" por alterações que tenham sido feitas. Os 10 "responsáveis por delegação" que conversaram com o blog negam que tenham informado qualquer lista ou que tenham sido procurados pela CBAt para tanto. Ainda vale ressaltar que a lista de atletas hospedados foi entregue um mês depois da hospedagem, e não antes.
Com relação à hospedagem para o Ibero-Americano, argumentou apenas que a hospedagem não se restringia a atletas. Como mostrado acima pelo blog, a nota fiscal diz claramente que 500 atletas foram hospedados.
A confederação se negou a detalhar os serviços prestados pela Rumo Certo, explicando apenas que "os serviços contratados foram aqueles apresentados em cada um dos planos de trabalho dos respectivos projetos". Os planos de trabalho são sempre genéricos.
Sobre os ônibus, a CBAt alegou que eles se destinavam ao "transporte dos atletas pelos trajetos eventualmente necessários, não se limitando ao trajeto hotel-estádio". Não explicou, porém, quais outros trajetos seriam necessários para um atleta durante a competição.
Com relação à premiação exagerada, afirmou que todas as aquisições são feitas com base nos regulamentos da IAAF (Associação Internacional das Federações de Atletismo). Mas se negou a informar o que foi feito das medalhas excedentes, como calculou quantas medalhas deveria comprar e a disponibilizar fotos dos atletas recebendo troféus.
Quanto às empresas contratadas para conferir a aplicação das regras do atletismo serem de outros ramos, a CBAt diz que a cotação é feita exclusivamente para que se tenha referência quanto ao preço médio no mercado e que eventual contratação posterior é efetivada estritamente conforme os ditames legais. Mas não explicou por que questionou o preço de mercado com empresas que não prestam o serviço.
Rumo Certo
Proprietário da empresa, Severino da Silva Santos negou de forma veemente que a sua empresa seja de fachada, o que chamou de "falácia". Questionado sobre os orçamentos genéricos, considerados como indícios de fraude por órgãos de controle como o Tribunal de Contas da União (TCU), afirmou que, se o repórter quisesse informações, deveria ter lido os planos de trabalho – os documentos expostos aqui, saíram de lá.
Severino garante que "entregou e sempre entregará todos os materiais e documentos legais necessários para a correta prestação de contas com as entidades as quais nos contrataram". A CBAt nunca os entregou à SELJ. Quando questionado pessoalmente, Severino disse que mandaria esses documentos por e-mail.
Tomhara
Em resposta por email, Milton Nishihara, diretor da Tomharam respondeu que "os serviços (prestados para a Cbat) foram cotizados, posteriormente aprovados e contratados conforme solicitado".
Secretaria Estadual de Esporte, Lazer e Juventude
Em nota, a SELJ explicou que, nos convênios citados, de acordo com a legislação vigente, as entidades esportivas apresentavam no plano de trabalho grade comparativa de preços contendo, no mínimo, três empresas e que os documentos eram checados pela área técnica. que formalizava os processos. A secretaria argumenta que "sempre coube às entidades a responsabilidade de melhor utilização dos recursos, com posterior verificação da SELJ e envio dos processos ao Tribunal de Contas do Estado".
A pasta lembra que uma lei federal, de 2016, mudou o formato de celebração de convênios, que agora passam por um chamamento público – as exigências para as prestações de contas, porém, seguem essencialmente as mesmas. A SELJ ainda diz que 'qualquer indício de irregularidade, ainda que posterior à celebração dos convênios, será investigado pela SELJ e encaminhado à Corregedoria Geral da Administração".
Sobre o autor
Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.
Está disponível para críticas, elogios e principalmente sugestões de pautas no demetrio.prado@gmail.com.
Sobre o blog
Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.