O que ginástica feminina do Brasil fez de errado para ficar fora de Tóquio
*Matéria editada às 14h20 para acréscimo de informações
O sucesso esportivo se sustenta sobre um tripé formado por infraestrutura, atletas talentosos e treinadores capacitados. Se a ginástica artística feminina do Brasil fracassou ao tentar buscar uma vaga olímpica em Tóquio apesar de oferecer infraestrutura de primeiro mundo à melhor geração de ginastas de sua história, o diagnóstico não é difícil: faltam treinadores de alto-rendimento trabalhando no Brasil.
Com poucos técnicos, o país quase não forma em número suficiente ginastas com nível para chegar à seleção. Um grupo de quatro atletas – Jade Barbosa, Flavia Saraiva, Lorrane Oliveira e Rebeca Andrade, todas do Flamengo – tem amplo apoio do Comitê Olímpico do Brasil (COB), que montou o que na prática funciona como uma seleção permanente, comandada pelo cazaque Valeri Liukin.
Carolyne Pedro e Thais Fidelis, da Cegin, também são apoiadas, em menor grau. Enquanto as flamenguistas contam com fisioterapeutas, massagistas, médicos, psicólogos e nutricionistas do COB no Rio, as atletas da Cegin, em Curitiba, têm que pagar do bolso por esses profissionais no Paraná.
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Ninguém discute as seis "top's", como são conhecidas, estão um passo à frente do resto e justificam todo o apoio a elas dispensado. Mas, sozinhas, elas não fazem verão, como ficou claro no fracasso do Mundial, quando a equipe teve que recorrer de última hora a Letícia Costa, que dá expediente como assistente administrativa do COB e treina nas horas vagas.
Formar novas ginastas depende da qualificação de treinadores e da iniciativa de clubes e da Confederação Brasileira de Ginástica (CBG), passivos diante de um COB cada vez mais "dono" da ginástica artística feminina brasileira e que, por isso, impõe sua filosofia, naturalmente voltada às chances de medalha em Jogos Olímpicos.
Ao longo dos últimos dias, o Olhar Olímpico passou mais de 8 horas ao telefone falando com a maior parte dos principais envolvidos com a modalidade no país. Todos se surpreenderam com o resultado do Mundial, mas não porque achem que as coisas estão caminhando bem. Simplesmente avaliavam que o Brasil ainda ficaria de pé em Tóquio e passaria a sofrer a maior crise da sua história no próximo ciclo olímpico.
Onde estão os treinadores?
Dono de duas medalhas olímpicas, Arthur Zanetti chegou ao topo sempre tendo ao lado o técnico de toda a vida, Marcos Goto. É a regra na ginástica: atleta e treinador crescem juntos e são reconhecidos juntos. Foi assim que Keli Kitaura e Francisco Porath chegaram à seleção com Rebeca Andrade, Alexandre Carvalho cresceu com Flávia Saraiva, Roger Medina ajudou Thais Fidelis a ser a grande revelação do atual ciclo olímpico e Ricardo Pereira despontou com Jade Barbosa.
Se a seleção está tão bem servida por suas titulares é porque treinadores talentosos as descobriram e as lapidaram para a elite. Por eles, continuaria sendo assim. No início de 2016, Keli, Alexandre e Ricardo apresentaram ao COB um projeto pelo qual cada um dos três iria para um local diferente do país, fora do eixo Sul/Sudeste, para desenvolver a ginástica e descobrir novos talentos. Fizeram diversas reuniões, mas o projeto foi rejeitado. "Não vou atrasar a vida de ninguém. Era um momento conturbado do COB, eles tinham propostas do exterior, e eu não tinha como atender aqueles projetos naquele momento", justifica Jorge Bichara, diretor de Esporte do COB.
A história dos três com a ginástica brasileira não durou nem até o final daquele ano. Sem perspectivas, Keli e Alexandre se mudaram para New Jersey (EUA), onde começaram um trabalho do zero em um clube local. Ricardo está no Canadá, descobrindo talentos e preparando a seleção canadense de 2024. Roger Medina também foi embora e hoje comanda a seleção da Argentina. Não receberam apoio do COB ou da CBG, mas também não tinham emprego nos clubes.
Dos seis treinadores brasileiros que formaram a elite da seleção brasileira, só dois seguem no Brasil: a ucraniana Iryna Ilyashenko, há duas décadas em Curitiba, e Chico, contratado pelo COB para ser o técnico pessoal das quatro ginastas "top's" do Flamengo: Flavinha, Jade, Rebeca e Lorrane. Georgette Vidor, que descobriu Daniele Hypolito e atuou diretamente na formação de Flavinha e Rebeca, hoje está escanteada pela CBG. Pagou do bolso para ir a Stuttgart e não conseguiu ajuda da confederação nem para comprar ingressos. Teve que recorrer a amigos de outros países para ver de perto a seleção falhar.
"Existe um monopólio de conhecimento nas mãos do Henrique Mota (coordenador de ginástica artística feminina na CBG), e Bichara", reclama uma pessoa próxima à seleção. Os dois negam. O COB lembra que a Academia Brasileira de Treinadores (ABT) formou 37 técnicos de ginástica artística em 2014, capacitados por 750 h/aula. No ano passado, esses treinadores tiveram uma reciclagem. A CBG citou que no ano passado foram oito campings de treinamento, todos abertos aos técnicos pessoais das convocadas.
Para treinadores ouvidos pelo Olhar Olímpico, iniciativas assim vão demorar a dar resultado. "Os treinadores capazes de formar uma nova geração não estão mais. A Flavinha e a Rebeca ainda competem em 2024, mas vai ficar um degrau. Ninguém sabe a qualidade das meninas que vão vir se não tem treinador para formar", disse um dele.
Rotina de privilégios
Ninguém ousaria dizer que a ginástica feminina não recebe a devida atenção do COB. A modalidade é a menina dos olhos da área esportiva do comitê, que não deixa nada faltar às quatro meninas do Flamengo, que treinam todos os dias no CT do comitê, a Carolyne e Thais, ambas da Cegin, do Paraná. Rebeca, Jade e Lorrane moram em apartamentos alugados pelo COB próximo ao Parque Olímpico da Barra, benefício oferecido, segundo o comitê, a todos os atletas em "treinamento contínuo" dentro do CT.
Das cinco ginastas que competiram pelo Brasil no Mundial de Stuttgart, quatro ganham no mínimo R$ 10 mil ao mês, remuneradas pelo governo federal, pelo estado do Paraná (Carolyne e Thais), pelo Flamengo, e pela CBG. Letícia Costa, que completou o time, vive com R$ 925 do Bolsa Atleta. Ela é federada pelo Fluminense, que não paga salários na ginástica (mas ajuda com uma bolsa de estudos), e sobrevive trabalhando no COB, onde já foi jovem aprendiz, estagiária e agora é assistente administrativa.
Letícia só começou a treinar com alta carga a a três semanas do Mundial, sabendo que provavelmente seria a primeira reserva da seleção. Dito e feito. Carolyne Pedro se machucou a Letícia, que não competia como atleta de ponta há quatro anos, acabou tendo que se apresentar no Mundial.
Bichara diz que todo esse processo fez bem à ginasta. "Ela encontrou horários onde podia treinar com o treinador do Fluminense e conseguiu se desenvolver assim. Ela foi para a seleção pelos resultados. Talvez ela seja a única atleta do Brasil, nesse nível de disputar Mundial, que trabalhe ao mesmo tempo que treina. Mas não acho que tenha sido prejudicial a ela. Fez bem a ela como pessoa", afirma, aproveitando para rebater qualquer possível acusação (que a reportagem não ouviu) de que Letícia foi beneficiada por ser funcionária do COB. No Brasileiro, apesar das dificuldades de treinamento, ela teve a mesma nota de Carolyne Pedro no individual geral.
Para os especialistas ouvidos pelo blog o problema não é Letícia ter sido convocada, mas o fato de uma seleção que tem tamanho apoio financeiro, estrutural e político precisar recorrer a uma atleta amadora no momento-chave do ciclo olímpico. "Todo mundo sempre soube que o Brasil só tinha seis ginastas. Se machucasse duas não tinha para onde correr. E aconteceu exatamente isso: duas se machucaram e o Liukin não tinha um plano B", diz um treinador.
Três das pessoas ouvidas pela reportagem acreditam que a seleção descartou cedo demais Daniele Hypolito, que está com 35 anos, chegou a ser campeã brasileira no ano passado, mas não participou da competição deste ano. Ela é uma das 11 ginastas que, segundo a CBG, recebe uma bolsa da confederação – as outras são as seis 'top's', Anna Julia Reis, que está lesionada, e três juvenis. A entidade alega uma "cláusula de confidencialidade" para não revelar nem o valor das bolsas, pagas com recursos da Caixa Econômica Federal, nem os critérios que definem quem tem bolsa e quem não tem. Mesmo beneficiadas pela Bolsa Pódio, Rebeca e Flávia ganham cerca de R$ 5 mil ao mês.
Poucas competem internacionalmente
Pela proximidade dos Jogos Pan-Americanos e do Mundial Pré-Olímpico, ficou definido que a elite da seleção feminina do Brasil não disputaria o Campeonato Sul-Americano em Santiago (Chile), na segunda quinzena de junho, para evitar desgastar as 'top's'. Sem elas, o Brasil não foi representado e a comissão técnica perdeu a chance de avaliar internacionalmente as ginastas que poderiam ser necessárias (como foram) no Mundial.
"Esse deveria ser um evento que não precisaria ir as top's. As do meio poderiam ir competir, aquelas que não iriam para o Pan ou para o Mundial. Mas não, a CBG não manda ninguém, não dá satisfação, não diz por que não mandou ninguém", reclama a treinadora de um clube.
Não levar o que seria o "time B" do Brasil ao Sul-Americano pode ter um efeito devastador. Cinco ginastas perderam a chance de ganhar medalha e subir um degrau na Bolsa Atleta, passando a ganhar um valor que as permitisse pensar em viver de ginástica: R$ 1.850. Os R$ 925 da bolsa nacional, afinal, são menos do que um salário mínimo.
"Foi uma escolha da comissão técnica não participar do evento. A gente dá autonomia e liberdade para a comissão", diz Henrique Motta, coordenador da seleção, que, evitou criticar a decisão. "Os planejamentos precisam ser vistos e revistos o tempo todo. Claro que é preciso sempre se analisar os fatos para que a gente possa ter o melhor panorama possível para atingir os melhores resultados."
Onde estão as ginastas?
As 'top's' do Flamengo foram poupadas do Campeonato Brasileiro, realizado em agosto na Praia Grande (SP). Thais Fidelis foi a campeã do individual geral, seguida de Carolyne Pedro e de Letícia Costa. Só elas competiram em nível suficiente para pensar em seleção brasileira. No total, só se inscreveram outras 12 adultas, de seis clubes.
As ginastas são consideradas "adultas" a partir do ano em que completam 16 anos, o que faz com que, todo ano, uma nova leva de atletas fique à disposição da seleção. No atual ciclo olímpico, só Carol e Thais tiveram seguidas chances de defender o Brasil. As demais foram ficando pelo caminho, por lesão e/ou falta de incentivo. Poucas modalidades exigem tanto física e psicologicamente dos atletas quanto a ginástica feminina e, quando não há recompensa, o esforço passa a não valer à pena.
Fabiane Brito machucou o joelho e parou. Sem apoio, Julie Kim foi pelo mesmo caminho. Luiza Domingues deixou de ser convocada e reduziu o ritmo de treinamentos. Anna Júlia Reis está machucada e pode nem voltar à ginástica.
"Em 2012 a gente também sofreu para montar uma seleção, que tinha média de idade altíssima e se classificou por pouco. Mas a gente sabia que era um momento, que dali a pouco viriam a Flávia e a Rebeca. É como quando você tá duro, mas sabe que vai receber o salário. Agora é melhor começar a vender bolo na rua", compara um treinador.
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