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Olhar Olímpico

Justiça autoriza e menina trans de 11 anos compete chorando

Demétrio Vecchioli

22/04/2019 10h25

Maria Joaquina (arquivo pessoal)

A menina Maria Joaquina, de 11 anos, conseguiu na Justiça o direito de participar, na manhã desta segunda-feira (22), do Campeonato Sul-Americano de Patinação Artística, que está sendo disputado em Joinville, em Santa Catarina. A família dela, vice-campeã brasileira, travou longa batalha judicial contra os organizadores do torneio, que haviam rejeitado sua inscrição porque o RG dela constava como sexo masculino.

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A Confederação Sul-Americana de Patinação (CSP), presidida pelo brasileiro Moacyr Neuenschwander Junior, também presidente da Confederação Brasileira de Hóquei e Patinação (CBHP), fez de tudo para atrapalhar a menina, de acordo com a família. Vetou, por exemplo, que ela fizesse o reconhecimento da pista de patinação, direito concedido a todas as outras competidoras, que treinaram lá na sexta. Maria Joaquina então não estava inscrita. 

Nesta segunda, os pais apresentaram requerimento solicitando que então fosse autorizado que a menina treinasse na pista por 10 minutos, o que foi negado pela confederação. Também foi alterada a ordem de apresentação, para que Maria Joaquina fosse a primeira a competir – na patinação artística, é de praxe que as melhores se apresentem por último. Vice-campeã brasileira, Maria Joaquina competiu chorando, nervosa. Caiu quatro vezes.

Sentiu toda a pressão colocada sobre a participação dela no torneio. Depois de disputar o Brasileiro, autorizada pela CBHP, ela teve rejeitada a convocação para o Sul-Americano, pela própria CBHP. Os pais entraram na Justiça e as confederações recorreram, alegando que consta no RG dela o sexo masculino. Essa mudança precisa ser autorizada também judicialmente, mas o processo é lento.

Desde quarta-feira (17), o processo teve várias etapas. Um desembargador da Justiça estadual de São Paulo o remeteu à Justiça Federal, que na sexta declinou competência. Só no domingo (21) o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que a competência era mesmo do TJ-SP. Aí, no domingo à tarde, o TJ-SP manteve a decisão monocrática de primeiro grau e autorizou Maria Joaquina a competir.

Ela foi adotada em 2016, aos oito anos, pelo casal Gustavo Cavalcanti e Cleber Reikdal junto com seus dois irmãos: Carlos e Talia. "Ela já tinha uma insatisfação com a aparência masculina e após um mês da adoção começou a pedir para vestir as roupas da irmã", relata Cleber. 

Uma solução paliativa adotada de início foi chamar as três crianças por apelidos. Ela seria a "Jojô". Não demorou para a menina escolher outro nome. Queria ser Maria Joaquina, como a protagonista da novela infantil Carrossel. Mas só o nome não bastava. A menina vivia triste, como se não se reconhecesse no mundo. Para poder usar brincos, furou a própria orelha.

"Levamos ela a um médico, que a diagnosticou com disforia de gênero. Desde então, ela passou a ter acompanhamento com psicólogos e com a equipe multidisciplinar no Hospital de Clínicas de São Paulo. Hoje ela se identifica plenamente com o gênero feminino e acolhemos e respeitamos a decisão dela", continua o pai.

O processo seguinte foi solicitar à Justiça a mudança nos registros civis. O Ministério Público já deu parecer favorável, mas a sentença ainda não saiu. Por isso, seus documentos apontam "sexo masculino".

Mesmo assim, ela conseguiu participar de outras competições femininas de patinação, inclusive oficiais. Participou do Campeonato Paranaense em 2017 e 2018 e, com aval da CBHP, foi inscrita no Campeonato Brasileiro do ano passado. De forma surpreendente para quem não colhia bons resultados, foi medalhista de prata. A competição classificava as cinco primeiras colocadas para o Sul-Americano.

Como Maria Joaquina tem apenas 11 anos e não entrou na puberdade, os níveis de testosterona dela não se distinguem de uma menina da mesma idade. Por isso, não se fala, nesse caso, de vantagem esportiva. 

 

Sobre o autor

Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.

Está disponível para críticas, elogios e principalmente sugestões de pautas no demetrio.prado@gmail.com.

Sobre o blog

Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.