Julgamento de Semenya coloca ciência e direitos humanos frente a frente
Começa nesta segunda-feira um julgamento que promete impactar significativamente o esporte no futuro. Em Lausanne, na Suíça, a Corte Arbitral do Esporte (CAS) deve ouvir, durante toda a semana, os argumentos da sul-africana Caster Semenya contra a regra a Associação das Federações Internacionais de Atletismo (IAAF) que a impediria de competir sem passar por tratamento hormonal. Ainda não há previsão de data para a publicação da sentença.
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O julgamento é histórico porque Semenya, tricampeã mundial dos 800m e praticamente imbatível na distância, é a mais famosa atleta com hiperandrogenismo que se tem notícia. A doença faz com que seu corpo produza muito mais testosterona do que uma mulher comum, o que também proporciona a ela um corpo masculinizado. A decisão tomada pela CAS, órgão máximo da justiça desportiva mundial, deve pautar também outros casos envolvendo mulheres com hiperandrogenismo ou mesmo hermafroditas.
Ao lado de Semenya, que no passado chegou a ser barrada de competições, estão os movimentos pelos direitos humanos. Já a IAAF chega a Lausanne com um exército de cientistas, incluindo uma médica transexual que milita ao lado das mulheres transgêneras no esporte.
Os dois lados têm argumentos relevantes para a discussão, que na prática vai colocar frente e frente as ciências e os direitos humanos. Devem prevalecer os estudos que mostram que atletas como Semenya têm uma vantagem esportiva sobre mulheres comuns ou o entendimento de que ela é uma mulher, não se valeu de tratamento para obter esse ganho competitivo, e tem o direito de competir como qualquer outra?
A IAAF argumenta, como fez no passado, que não quer tirar de Semenya esse direito de competir. Mas diz que, para uma mulher participar de provas de distâncias que vão de 400 metros a uma milha (acima de 1.600 metros), ela precisa ter os níveis de testosterona controlados até um teto já acima de uma mulher comum. Ou seja: ela pode competir, desde que passe por tratamento hormonal, como foi de 2010 a 2015.
Dez anos de novela
A polêmica em torno de Semenya começou em 2009, logo depois de ela ser campeã mundial dos 800m aos 18 anos. A IAAF solicitou um "teste de verificação de sexo" para determinar se Semenya era mesmo uma mulher. O resultado do teste nunca foi publicado e a sul-africana ficou quase um ano afastada das pistas, enquanto a IAAF investigava o caso.
Quando retornou, em 2010, Semenya passou a se submeter ao limite de testosterona. Seus resultados não se mantiveram os mesmos, ainda que tenha vencido o Mundial de 2011 e a Olimpíada de 2012 (depois de a russa Mariya Savinova perder o ouro por doping).
Em 2015, nova reviravolta. A indiana Dutee Chand entrou na CAS contra a regra de hiperandrogenismo da IAAF e conseguiu que o limite de testosterona fosse suspenso por dois anos. Bom para Semenya, que ganhou tudo que disputou desde então nos 800m: o ouro olímpico no Rio, o Mundial de 2017 e os Jogos da Comunidade Britânica em 2018.
Em abril do ano passado, depois de um amplo estudo, a IAAF anunciou as suas novas regras para hiperandrogenismo, que deveriam valer a partir de novembro. Depois, voltou atrás e adiou o início da eficácia para o próximo dia 26 de março, à espera do julgamento da CAS.
Mais polêmica
Na semana passada, o jornal britânico The Times jogou mais fogo no palheiro. Publicou reportagem afirmando, a partir de fontes não identificadas, que a IAAF iria defender, no tribunal, que Semenya deve competir contra homens. A federação internacional respondeu rapidamente afirmando que Semenya é "indiscutivelmente" uma mulher, mas a ferida já estava ainda mais aberta.
"A categoria feminina no esporte é uma categoria protegida. Para servir aos seus propósitos, que incluem proporcionar oportunidades iguais às dos homens, deve ter padrões de elegibilidade que assegurem que os atletas que se identificam como femininos, mas têm níveis de testosterona masculinos, pelo menos reduzam seus níveis de testosterona ao do sexo feminino, a fim de competir no nível de elite entre as mulheres", declarou a IAAF, por comunicado, nesta segunda.
A entidade divulgou pela manhã a lista de testemunhas arroladas para defender seu ponto de vista. Entre eles estão diversos cientistas reconhecidos, entre médicos, advogados, farmacêuticos e físicos. Também foi arrolada a médica Joanna Harper, norte-americana que publicou estudo sobre os resultados obtidos por transgêneros em provas de corrida. Ela concedeu diversas entrevistas a órgãos brasileiros, incluindo o UOL Esporte, para defender a legitimidade de Tifanny para jogar vôlei.
Já Semenya tem, ao seu lado, o apoio de diversas personalidades, dirigentes e políticos da África do Sul, incluindo o ministro do Esporte local, e também manifestações favoráveis de entidades de defesa dos direitos humanos. No ano passado, a Women's Sports Fundation liderou um movimento em defesa da sul-africana.
"A decisão da IAAF estabelece um perigoso precedente para o contínuo policiamento e escrutínio dos corpos das mulheres que contaminaram o esporte das mulheres por tanto tempo. O que está em jogo aqui é muito mais do que o direito de participar de um esporte. O corpo das mulheres, o seu bem-estar, a sua capacidade de ganhar a vida, a sua própria identidade, a sua privacidade e sensação de segurança e de pertença ao mundo, estão em risco iminente", pontou a ONG.
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