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Olhar Olímpico

Entidade anônima leva R$ 3,1 mi de Temer e paga uniforme até para Alemanha

Demétrio Vecchioli

02/01/2019 18h35

Esta tela foi apresentada ao governo como cotação de preço de camisas para seleções.

Uma "confederação" de "futebol areia" vai receber R$ 2,1 milhões do governo federal para realizar um "Campeonato Mundial" da modalidade no Rio de Janeiro, no ano que vem. E mais R$ 1 milhão para manter uma escolinha para adolescentes em São Vicente (SP). As aspas são porque nem a entidade, nem a modalidade e nem o campeonato são reconhecidos pela CBF, pela Conmebol ou pela Fifa. O plano de trabalho aprovado a toque de caixa pelo Ministério do Esporte, ainda no governo Temer, inclui a compra de uniformes para todas as seleções do Mundial, incluindo Alemanha e Canadá, com recursos federais brasileiros.

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A verba foi liberada no último dia útil de 2018 e o convênio só foi publicado no Diário Oficial da União nesta quarta-feira (2). A confederação tem sua base no Rio Grande do Sul, como o secretário nacional de Alto-Rendimento, Celso Giacomini (MDB-RS). O termo de fomento, porém, foi assinado pelo ex-ministro Leandro Cruz (MDB-RJ). Os R$ 2,1 milhões eram também pleiteados pela Confederação Brasileira de Judô (CBJ), que pretendia usar a verba para trazer para o Brasil uma etapa do Grand Slam, importante na classificação olímpica.

O projeto do futebol de areia desse Mundial destoa completamente do padrão de outros convênios assinados pelo Ministério do Esporte na última década. Os orçamentos de hotel e de passagens aéreas são meras reproduções toscas de cotações feitas em grandes sites de varejo, com datas aleatórias. No caso das camisetas, foi cotada uma do Ibis, o "pior time do mundo", como se vê na imagem acima, retirada do sistema de convênios do governo federal. O preço da camisa serve de referência para estipular o total a ser repassado à entidade.

Em documento apresentado ao Ministério do Esporte, a Confederação Brasileira de Futebol de Areia (CBFAreia) ressalta que é responsável no Brasil pelo "futebol de areia" e não pela "outra modalidade do gênero", em uma referência ao "beach soccer", o "futebol de praia". "São esportes tão diferentes quanto basquete e vôlei. Só o piso é o mesmo", diz o presidente da CBFAreia, o gaúcho Nereu Maydana.

A principal diferença entre as duas modalidades é número de atletas de linha – são cinco atletas na linha no futebol de areia e quatro no futebol de praia. Algumas regras, como a cobrança de lateral, também são diferentes. Não é possível dizer se existem jogadores de "futebol de areia" no Brasil, uma vez que desde 2016 nenhuma competição dessa modalidade é realizada no país.

Mesmo assim, no apagar das luzes do governo Michel Temer (MDB), o então secretário Celso Giacomini aprovou dois convênios com a CBFAreia, que vai receber R$ 3,1 milhões. Somadas, todas as confederações olímpicas brasileiras firmaram convênios de R$ 3,3 milhões durante os dois anos e meio do governo Temer – entidades representativas da canoagem e dos saltos ornamentais receberam outros R$ 2,2 milhões.

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As entidades

A Fifa só reconhece no Brasil a CBF como responsável pelas modalidades futebolísticas. Mas, por um acordo histórico, a CBF não cuida nem do futsal, nem do "beach soccer", repassando a responsabilidade desta para a CBSB, a Confederação de Beach Soccer do Brasil. É ela quem convoca a seleção brasileira, quem leva a equipe para a Copa do Mundo da Fifa e quem organiza os campeonatos nacionais de clubes.

Porém, a Constituição brasileira permite a livre associação. Isso significa que um grupo de pessoas pode se juntar, criar um esporte e uma confederação para geri-lo. A entidades privadas (como a CBF e a Fifa) cabe reconhecê-las ou não. Ao Ministério do Esporte, agora extinto, cabia colocar todos os fatos na balança, inclusive minúscula disponibilidade financeira, para aprovar ou não propostas de convênio, que nada mais são do que pedidos por recursos.

Sabendo de toda essa situação, o ME optou por financiar o Mundial de Futebol de Areia, que será realizado na quadra de areia do Parque Olímpico da Barra e que tem a chancela da Soccer World Confederation (SWC). A carta com a chancela foi registrada no sistema do governo no dia 17 de dezembro, um dia depois do site da entidade, com sede no Canadá, entrar no ar. E no mesmo dia da publicação de uma notícia de duas linhas no site da SWC que informa que "o Mundial de Futebol de areia vai acontecer no Brasil", com uma declaração do presidente Nereu Maydana: "É uma escolha lógica, uma vez que as raízes do esporte estão no Brasil".

Nereu, em seu currículo, conta que em 1989 idealizou a criação do futebol de areia no Brasil e que, em 1996, colaborou com a "Koque Tavares" (na verdade, Koch Tavares) com "a criação da modalidade beach soccer, fornecendo informações, equipes e atletas do futebol de areia". Historicamente a Koch, uma promotora de eventos, é reconhecida como responsável por criar o beach soccer, organizando os primeiros torneios e padronizando regras.

Seleção brasileira de futebol de areia se reuniu pela última vez em 2017

A proposta

Ao apresentar uma proposta de convênio, uma entidade deve formular um plano de trabalho (que não consta no sistema público do governo), apresentando três cotações de cada item do projeto, tomando o mais baixo como referência. No documento "camisa e short", a CBFAreia constam cinco reproduções de telas de sites de varejo. Em uma delas, são cotadas camisetas do Ibis, o time pernambucano conhecido como "pior do mundo". 

Em outra, foi cotada no site da loja Centauro uma camisa da seleção brasileira de futebol de campo, com o símbolo da CBF, por R$ 149,99, dezenove centavos mais cara que a do Íbis. É exatamente esse último o valor levado em consideração no plano de trabalho, que inclui a compra de 144 camisas – 12 por seleção participante do Mundial, cada uma com 12 jogadores. É o governo brasileiro que vai pagar o uniforme completo dos rivais, numa despesa de R$ 78 mil.

"Se trata de um evento de seleções, de países. Se é uma coisa que disponibiliza, a gente quer dar a melhor qualidade possível.  Tudo que a gente colocou são itens que estão dentro, que são passíveis desse tipo de cobertura. Queremos dar a melhor qualidade possível porque tratam-se de seleções. Todo evento que a gente sedia, esses quesitos são responsabilidade do país sede. A gente tem essa preocupação", respondeu Nereu, à reportagem, quando questionado sobre a necessidade de o governo brasileiro pagar pelo uniforme dos outros países.

Também caberá ao Brasil pagar passagem aérea, translado, hospedagem e alimentação para as equipes, o que vai custar cerca de R$ 1 milhão. As passagens foram cotadas em sites de compra no varejo, sem detalhar as datas. No caso dos hotéis, a cotação simulada foi para um único dia, em hotel cinco estrelas no Rio.

"Como é um evento que vai acontecer de uma forma bem mais longa, não vai ser agora, não se sabe quanto vai estar a passagem no período da contratação. Não tinha como saber o preço da passagem. O que a gente fez foi uma cotação aproximada. Não tem como ter uma cotação exata do que vai acontecer mais adiante", alega Nereu. 

Estrutura

O Mundial vai acontecer no Parque Olímpico da Barra, na quadra externa de areia que a Autoridade de Governança do Legado Olímpico (AGLO) hoje considera como seu quinto equipamento. Ela foi construída como contrapartida da Confederação Brasileira de Vôlei (CBV), com o areia comprada por ela para realizar um evento no Centro Olímpico de Tênis, do qual é vizinha.

A AGLO, que é uma autarquia do antigo Ministério do Esporte, diz que "a ideia é que as estruturas internas, como banheiros e vestiários do Centro de Tênis sirvam de apoio para a quadra externa".  Mas o Ministério do Esporte aprovou mais para locar R$ 200 mil em estruturas que já existem no Centro de Tênis, como vestiário, banheiro e salas para a organização.

Além disso, aprovou outros R$ 372 mil para montagem das arquibancadas provisórias. Quem visitou o Parque Olímpico da Barra na quarta-feira (2) pôde observar que o local já tem arquibancadas, que a AGLO diz agora que são provisórias. Em novembro, a imprensa do Rio noticiou que as arquibancadas passariam a ser permanentes. 

"Por se tratar de um Mundial de grande porte ele requer uma estrutura de nível internacional", argumenta Maydana, que conta que não foram realizadas eliminatórias para definir quais são as 12 equipes que jogarão a competição, se baseou em vários critérios. "Não teve assim tipo um ranking. Você precisa entender que é um projeto futuro nosso. Foram levados em consideração varias fatores, como qualidade dos jogadores", diz ele, sonhando com a presença de ex-jogadores de futebol, para dar mais visibilidade para o esporte. 

No projeto inicialmente apresentado, Maydana tentou emplacar a compra de lanches para a torcida: 480 pães "cartas" com presunto e queijo, durante cinco dias. Cada um deles custaria R$ 6. "Se é o preço do orçamento, é o preço certo", diz o cartola, que afirma que considera que o valor é o de mercado. O item foi recusado pelo governo.

Mais R$ 1 milhão

Outros R$ 994 mil foram liberados pelo Ministério do Esporte, também na última semana do ano, para a que a CBFAreia mantenha uma escolinha de futebol de areia em São Vicente, no litoral de São Paulo. A meta é que 48 meninos e 16 meninas de até 17 anos sejam beneficiados. É regular que esse tipo de projeto conte com apoio da Lei de Incentivo ao Esporte, cabendo à entidade buscar o financiamento na iniciativa privada.

O valor também se distingue muito do custo usual de manter uma escolinha de futebol de areia no país. É que ele incluiu a locação, por 12 meses, de uma arquibancada móvel, que vai custar R$ 295 mil ao governo federal. Dois contêineres para guardar o material de trabalho serão alugados por R$ 86 mil, enquanto quatro profissionais farão a segurança constante da arquibancada e desses contêineres, por R$ 150 mil. "A gente quer uma estrutura que ofereça conforto não só para os atletas, mas para os familiares e para quem para para assistir", alega o presidente da confederação.

Para manter a escolinha funcionando para quatro turmas de 16 adolescentes, a confederação vai usar recursos federais para contratar quatro técnicos, quatro auxiliares, quatro fisioterapeutas e dois coordenadores. Todos em período integral. Cada time vai treinar três vezes por semana. O cartola alega que quer aproveitar a estrutura para oferecer mais aulas.

Futebol de areia

Maydana reclama que a imprensa trata "futebol de areia" e "beach soccer" como se fossem a mesma coisa. Diz que não são. Para diferenciá-las, cita que a areia do beach soccer é um pouco mais fofa do que a do futebol de areia, mas não dura como do "futebol praiano". O Mundial, porém, vai ser realizado em uma quadra de areia utilizada regularmente para competições oficiais de beach soccer.

Também há diferenças no número de atletas e algumas regras específicas, como a cobrança de faltas (no futebol de areia os jogadores não precisam ficar atrás da linha da bola), a cobrança de laterais (o futebol de areia admite com a mãe e com o pé) e o tempo de jogo (dois tempos de 20 minutos, não três de 12).

São detalhes suficientes para ele dizer que a comissão técnica da seleção, encabeçada pelo ex-jogador China, pretende convocar apenas jogadores de futebol de areia, mas sem excluir quem joga beach soccer. Difícil será encontrá-los.

No passado, a confederação realizava uma competição supostamente nacional que poderia ser categorizada como "de várzea", no Rio Grande do Sul, a Bolamar. Mas desde 2016 o torneio não é organizado. Maydana diz que existem competições regionais com as regras do futebol de areia, mas não sabe citar exemplos. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, por exemplo, nenhum torneio foi organizado nos últimos anos, ele confirma.

Outro lado

Olhar Olímpico contactou o agora ex-ministro Leandro Cruz, que pediu que as perguntas fossem enviadas à assessoria de imprensa do ministério, o que a reportagem fez na noite de quarta-feira. Assim que as respostas forem enviadas, o texto será atualizado.

Sobre o autor

Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.

Está disponível para críticas, elogios e principalmente sugestões de pautas no demetrio.prado@gmail.com.

Sobre o blog

Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.