Bebeto conta desilusão com Nuzman e com comunismo em autobiografia póstuma
Demétrio Vecchioli
25/10/2019 04h00
(reprodução)
De apenas 20 horas de entrevista gravada surgiu um dos livros mais importantes sobre a história do esporte no Brasil. Bebeto de Freitas, o que eu vivi é uma incomum autobiografia póstuma, escrita em primeira pessoa pelo jornalista Rafael Valesi, como previamente acordado, e publicada um ano e meio após a morte repentina do ex-jogador, ex-treinador e ex-dirigente.
Valesi, repórter com passagem pelo Lance!, teve dois únicos encontros com Bebeto. Na introdução, lamenta não ter guardado nenhuma foto. Chegou a submeter dois capítulos à aprovação do autobiografado, que morreu antes de ver a obra ganhar forma. Seus filhos, em especial Rico Freitas, treinador medalhista olímpico no vôlei de praia, fizeram questão de manter o projeto em pé, mantendo trechos como um em que Bebeto diz: "Espero estar vivo daqui a alguns anos para dizer que o Brasil mudou".
O pouco tempo de contato entre biógrafo e biografado, porém, não impedem que Bebeto de Freitas seja a melhor biografia esportiva lançada no Brasil em muito tempo. Entre tantas facetas do biografado, dedica mais atenção ao Bebeto técnico, ao torcedor e ao jogador de vôlei, nesta ordem. Sua passagem como presidente do Botafogo, por exemplo, é contada sem grande profundidade. Não faz falta — exceto, talvez, ao torcedor do Botafogo.
"Nunca perdoei Nuzman por ter aviltado os atletas da seleção"
Os trechos mais interessantes são os que explicam, a partir da história pessoal de Bebeto, como o vôlei, antes praticado de forma amadora nos clubes sociais do Rio, se tornou o segundo esporte do país. Nascido meses depois da prata em Los Angeles, eu precisaria recorrer a mecanismos de busca e ao acervo online dos grandes jornais para apontar o que no livro é novidade e o que não é. Ao menos para mim, a soma de todas as nuances é inédita.
Existem duas figuras centrais nesse processo. Bebeto é uma delas. A outra é Carlos Arthur Nuzman, seu antigo amigo e companheiro de time, que passou a ser seu antagonista. É amplamente conhecido que os dois não se davam, mas os motivos ficam claros no livro. "Nunca perdoei Nuzman por ter aviltado os atletas da seleção brasileira de qual fui integrante. Eles foram vilipendiados, tornaram-se vítimas de um sistema, por não receberem a fatia que lhes cabia das verbas da confederação", conta Bebeto.
O desconforto com Nuzman vai crescendo à medida que o livro avança, até que Bebeto rompe de vez com o amigo que ajudou a transformar em dirigente.
Eu não consigo mais olhar para os seus cornos. E arranje outro treinador para a seleção brasileira", disse, no vestiário da seleção, antes de deixar o comando da equipe que seria campeã olímpica em Barcelona.
Alguns detalhes são omitidos. Como o episódio em que Bebeto perdeu a confiança em Nuzman, em que fica claro que ele sabia de alguma irregularidade envolvendo atletas da Geração de Prata, mas não cita quais são os problemas. Em outros episódios, o treinador dá nome aos bois, como quando acusa Bernard Rajzman, o membro brasileiro do Comitê Olímpico Internacional (COI) e seu antigo bom amigo, de ter se aproximado de Nuzman depois que seu ex-sogro, então ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), pegou leve em uma fiscalização sobre as contas da Confederação Brasileira de Vôlei (CBV).
Ao recontar sua saída da seleção italiana, Bebeto reconta sua versão de que faltou a uma homenagem para resolver questões familiares de saúde no Brasil. A versão nunca convenceu os italianos, até o treinador revelar detalhes em um evento. Mas esses detalhes ficam fora do livro, infelizmente.
O livro, vale lembrar, é uma autobiografia. Por isso, não dá espaço ao contraditório, apresentando Bebeto de Freitas como um homem de fortes valores morais, que nunca aceitou fazer publicidade e que, quando cometeu erros e se arrependeu, foi sempre pensando no bem do outro. Nos capítulos finais, Bebeto torna público pela primeira vez que passou por graves problemas de saúde.
Entre as muitas passagens interessantes, destaque para a declaração de amor ao tio João Saldanha, com quem aprendeu a acompanhar o Botafogo e quem o inspirou a ser comunista na juventude. Não demora para o ainda jogador abandonar a ideologia, depois de visitar países do Leste Europeu em plena Guerra Fria e ver "na prática" o que aquilo representava. Só Alexandre Kalil, ex-presidente do Atlético-MG e hoje prefeito de Belo Horizonte, recebe mais elogios que o ex-treinador da seleção de futebol.
Bebeto de Freitas, o que eu vivi merecia estar nas prateleiras das grandes livrarias do país, o que por enquanto não acontece. A Livraria da Travessa, que recebeu o lançamento carioca, há um mês, vende a biografia em suas lojas no Rio e em seu site, por R$ 65,00 – ao menos quando este texto estava sendo escrito, vigia promoção por R$ 52,65. A loja da Editora 7Letras, em Ipanema, também tem o livro. Como a tiragem é baixa, sugiro correr.
Sobre o autor
Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.
Está disponível para críticas, elogios e principalmente sugestões de pautas no demetrio.prado@gmail.com.
Sobre o blog
Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.