Amor fez campeão europeu abrir mão de Olimpíada e virar brasileiro
Demétrio Vecchioli
04/05/2019 04h00
Mathieu e Ana Sátila (reprodução/Instagram)
Na canoagem slalom, um dos objetivos é passar por dentro de todas as portas verdes que aparecem pelo caminho. Ana Sátila e Mathieu Desnos sabem bem disso. No Mundial Sub-23 de 2017, ela foi prata e ele bronze no K1. Mas a maior conquista deles não foi essa. Naquela competição na Eslováquia, eles cruzaram juntos a mesma porta e deram início a um flerte. Depois de dois meses "se conhecendo", o francês aterrissava em Foz do Iguaçu (PR), sem falar uma palavra em português, para nunca mais ir embora. Dias antes, tornara-se campeão europeu da categoria, em sua última competição pelo país natal. Independente do que diga seu passaporte, agora ele é brasileiro.
A primeira competição de Mathieu pelo Brasil foi o Campeonato Pan-Americano, no fim de semana passado, no Rio Grande do Sul. E a estreia não poderia ser melhor, com a medalha de ouro, confirmando todo o potencial dele para disputar os Jogos Olímpicos de Tóquio.
O problema é que, ao escolher o Brasil, Mathieu abriu mão do sonho de estar na próxima Olimpíada. Pelas regras da Federação Internacional de Canoagem (ICF), ele pode competir pelo Brasil nos torneios por ela chancelados, inclusive o Mundial. Mas, para os Jogos Olímpicos e Pan-Americanos, o passaporte é exigência. E o francês só pode se naturalizar depois de quatro anos de residência permanente no país. Ou seja, em 2022.
"Me fiz essa pergunta muitas vezes, se valia a pena. O esporte vai estar em 20 anos da nossa vida. Ainda estou sonhando, posso ir aos Jogos Olímpicos em 2024. Mas, para mim, a coisa mais importante é a vida fora da canoagem", diz Math, como é conhecido pelos amigos brasileiros.
Foi a vida fora da canoagem que o trouxe ao Brasil. Duas semanas depois de ficar com Ana Sátila pela primeira vez, ele aceitou o convite para visitá-la em Foz do Iguaçu. Isso foi na primavera de 2017 e, desde então, ele mora na casa da sogra.
"Até então, eu nunca tinha estado no Brasil, não conhecia o país. Agora, eu sinto muita saudade quando estou fora. Fui embora de casa quando tinha 14 anos, para treinar. Ficava viajando pela Europa para competir, então nunca tive um lar, um lugar onde me sentisse em casa. Agora finalmente eu me sinto em casa em Foz", conta, avaliando que foi acertada a polêmica decisão tomada em 2017.
Math não falava português e não se relacionava com Ana Sátila há mais do que dois meses quando decidiu ficar. "Os dois sabiam que era um risco. Era complicado de conversar, só tinha a Ana para falar, então a gente se conheceu profundamente em pouco tempo. Eu sinto muito amor por ela, quero aprender coisas com ela todo dia. Quando contei para o meu técnico, ele perguntou: 'Mas você tem certeza?'. Na verdade eu não tenho nenhuma dúvida. No ano passado a gente foi visitar os avós da minha mãe, vi eles com 98 anos, 75 anos de casados, e olhava para a Ana a pensava: assim que eu quero terminar com ela. Não tenho nenhuma dúvida. A gente pode superar qualquer coisa."
Adaptação
Até hoje, os pais são os principais apoiadores da carreira de Mat, que vive uma vida "apertada" no Brasil e diz estar buscando patrocinadores. A França não tem programa de Bolsa Atleta, como no Brasil, então já quando morava e competia em seu país o canoísta dependia de ajuda financeira dos pais. O apoio sempre foi tamanho que a mãe é presidente do clube que Math defendia.
"Quando eu falei que queria ficar no Brasil, ela só me perguntou se eu tinha certeza, se era isso que eu queria. Eu disse que sim e ela disse que então beleza, que estava ali para o que precisasse", lembra. A certeza de Math sempre foi tanta que o presidente da federação francesa foi facilmente convencido a autorizar sua naturalização esportiva quando os dois conversaram, no Mundial do ano passado, disputado no Rio.
"Mesmo se ele não aceitasse, eu não ia voltar para a França. Joguei um pôquer. Ele disse que não teria problemas, que ele me liberaria. Foi mais fácil do que eu achei que seria. A federação entendeu que eu não queria saber da França", conta. Com a liberação, ele não precisou passar pela quarentena de dois anos sem competir internacionalmente.
Ainda assim, Mathieu passou 2018 sem competir. Depois de ser inicialmente bem aceito pelo técnico da seleção brasileira Cássio Ramon Petry, que aceitou treiná-lo mesmo quando ainda era francês, Math passou a ajudar nos treinamentos como técnico da namorada e de outros jovens canoístas, como Murillo Sorgetz, segundo melhor do Pan – a competição contou com diversos brasileiros, mas só permitia um por país no pódio, de forma que o ouro ficou com Mat e a prata foi entregue para um argentino.
Pepê, finalista olímpico, ficou apenas na quinta colocação. Mesmo assim, foi convocado para defender o Brasil em cinco etapas da Copa do Mundo. Math também vai para essas competições, mas pagando do bolso. Ele não acredita que, naturalizado, esteja tirando espaço de nenhum brasileiro.
"No esporte individual, quando se é um atleta de verdade não tem muito isso de estar competindo por esse país ou outro. Na canoagem slalom se você quer ser o melhor, você tem que ser o melhor e pronto. É bom ter mais gente competindo, porque você tem mais competitividade interna. Sem isso não vai ter resultado depois."
Sobre o autor
Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.
Está disponível para críticas, elogios e principalmente sugestões de pautas no demetrio.prado@gmail.com.
Sobre o blog
Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.