Veredito sobre caso Semenya vai nortear futuro do esporte feminino
Demétrio Vecchioli
30/04/2019 12h00
Caster Semenya, fundista sul-africana (Athit Perawongmetha/Reuters)
É legítimo o direito de Caster Semenya de ser atleta. Assim como é legítimo o direito das mulheres de competirem em igualdades de condições. A linha, tênue, que divide esses dois pleitos, vai enfim ser delimitada nesta quarta-feira (1), quando a Corte Arbitral do Esporte (CAS) anuncia o seu veredito para aquele que é considerado um dos mais difíceis e mais importantes julgamentos da história do esporte. A decisão, de última instância, deve afetar também a postura a ser adotada pela comunidade internacional quanto à elegibilidade de mulheres transexuais, tema que ainda não chegou à mais alta corte esportiva.
O que a CAS disser nesta quarta passará a ser norte para decisões futuras. Uma eventual liberação para Semenya mostrará que a corte tende a ficar ao lado do direito da mulher competir, uma vitória dos direitos humanos. Já a estipulação de rígido controle hormonal deve legitimar a adoção de regras mais duras para autorizar mulheres trans em competições femininas.
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Já são 10 anos de discussão em torno da elegibilidade de Semenya e quatro desde que a CAS suspendeu a aplicação de uma regra da Federação das Associações Internacionais de Atletismo (IAAF) que estipulava uma taxa máxima de 10 nmol/l de testosterona no sangue das atletas mulheres. Uma indiana recorreu e a corte deu dois anos para a IAAF apresentar um estudo que respaldasse essa regra. Esse estudo saiu no ano passado, Semenya recorreu, e desde fevereiro o caso está nas mãos da CAS, que postergou em mais de um mês o anúncio de um veredito.
O tema é muito delicado porque coloca frente a frente dois direitos antagônicos. Semenya, tricampeã mundial dos 800m e praticamente imbatível na distância, é a mais famosa atleta com hiperandrogenismo que se tem notícia. A patologia faz com que seu corpo produza testosterona em alta escala, possivelmente acima de 10nmol/L, enquanto a média de uma mulher vai de 0,12 a 1,79 nmol/L.
A IAAF encomendou um amplo estudo que mostrou que as mulheres com altas taxas de testosterona têm expressivo ganho de rendimento nas provas de distâncias entre 400 metros e 1 milha. Argumentando preocupação com a competitividade no esporte, propõe exigir que atletas que corram essas provas possam apresentar um teto de 5nmol/L em seus exames.
Esse estudo, conduzido por reconhecidos especialistas de diversas partes do mundo, é um argumento poderoso. Como é o de Semenya. Ela alega que a produção de altas taxas de testosterona é natural, que ela nasceu assim, e que isso não a torna menos mulher que qualquer outra corredora. Para a sul-africana, uma entidade internacional não pode condicionar sua participação em competições a um tratamento médico. Ingerir medicamentos para alterar o próprio corpo deve ser uma decisão voluntária de cada um, não um condicionante.
"O que está em jogo aqui é muito mais do que o direito de participar de um esporte. O corpo das mulheres, o seu bem-estar, a sua capacidade de ganhar a vida, a sua própria identidade, a sua privacidade e sensação de segurança e de pertença ao mundo, estão em risco iminente", ataca a ONG Women's Sports Fundation.
Corte máxima do esporte, a CAS precisa fazer uma escolha de Sofia. Dar razão à IAAF será um atentado aos direitos humanos, o que deve gerar reações de entidades que defendem esses direitos e da comunidade esportiva africana, especialmente da África do Sul. Semenya ficaria proibida de competir nas provas nas quais é especialista, a não ser que se submeta ao tratamento que ela recusa frontalmente.
Ao mesmo tempo, dar razão a Semenya e permitir que ela e outras atletas com hiperandrogenismo compitam sem realizar tratamento é um ataque ao princípio de que o esporte deve ser disputado por atletas em igualdade de condições. "A categoria feminina no esporte é uma categoria protegida", declarou a IAAF, em comunicado recente.
Ainda que o julgamento diga sentido exclusivamente ao caso Semenya, o veredito deve ditar os próximos e decisivos passos relativos à inclusão de mulheres trans no esporte feminino. Hoje, o Comitê Olímpico Internacional (COI) pende para a defesa dos direitos humanos, estipulando um limite de 10 nmol/l de testosterona no sangue das mulheres trans, que precisa ser testado mensalmente por um ano antes da "estreia" no esporte feminino e, depois, mantido, sob pena de banimento.
O COI "recomenda" que as federações internacionais a ele associadas adotem o mesmo critério, mas a FIVB, do vôlei, o suspendeu depois que a brasileira Tifanny começou a se destacar na Superliga. A FIVB suspendeu essa regra em abril do ano passado e montou uma comissão para avaliar o tema. Essa comissão espera o veredito da CAS para tomar qualquer decisão.
Uma eventual vitória de Semenya é também uma vitória de jogadoras como Tifanny. Porque, nesse caso, o CAS mostrará um entendimento de que o direito da mulher de praticar esporte prevalece. Por outro lado, um triunfo judicial da IAAF tende a estimular federações internacionais a aprofundar estudos que delimitem regras e condições para a participação das mulheres trans.
Sobre o autor
Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.
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Sobre o blog
Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.