Maria Joaquina só quer competir
Demétrio Vecchioli
21/04/2019 04h00
Maria Joaquina (arquivo pessoal)
Maria Joaquina tem 11 anos e o sonho de ser patinadora. Segunda colocada no Campeonato Brasileiro, deveria aproveitar o feriado de Páscoa para lustrar o par de patins antes do Campeonato Sul-Americano, que para ela começaria na segunda-feira (22) cedo. A poucas horas da competição, ainda em casa, em Curitiba (PR), ela depende que seus pais e um batalhão de advogados voluntários consigam convencer a Justiça a exigir sua inscrição. A guerra vem se estendendo durante todo o feriado.
A Confederação Brasileira de Hóquei e Patinação (CBHP) e a Confederação Sul-Americana de Patinação (CSP), ambas presididas por Moacyr Neuenschwander Junior, negam a convocação e a inscrição de Maria Joaquina no torneio, que está acontecendo em Joinville (SC). O motivo: na certidão de nascimento e no RG dela consta que Maria Joaquina é do sexo masculino. "Para mim não importa em que lugar eu fique. Eles podiam me deixar em último lugar. Eu só queria poder participar", disse a garota, ao Olhar Olímpico.
Maria Joaquina foi adotada em 2016, aos oito anos, pelo casal Gustavo Cavalcanti e Cleber Reikdal junto com seus dois irmãos: Carlos e Talia. "Ela já tinha uma insatisfação com a aparência masculina e após um mês da adoção começou a pedir para vestir as roupas da irmã", relata Cleber.
Uma solução paliativa adotada de início foi chamar as três crianças por apelidos. Ela seria a "Jojô". Não demorou para a menina escolher outro nome. Queria ser Maria Joaquina, como a protagonista da novela infantil Carrossel. Mas só o nome não bastava. A menina vivia triste, como se não se reconhecesse no mundo. Para poder usar brincos, furou a própria orelha.
"Levamos ela a um médico, que a diagnosticou com disforia de gênero. Desde então, ela passou a ter acompanhamento com psicólogos e com a equipe multidisciplinar no Hospital de Clínicas de São Paulo. Hoje ela se identifica plenamente com o gênero feminino e acolhemos e respeitamos a decisão dela", continua o pai. O processo seguinte foi solicitar à Justiça a mudança nos registros civis. O Ministério Público já deu parecer favorável, mas a sentença ainda não saiu. Por isso, seus documentos apontam "sexo masculino".
Mesmo assim, ela conseguiu participar de outras competições femininas de patinação, inclusive oficiais. Participou do Campeonato Paranaense em 2017 e 2018 e, com aval da CBHP, foi inscrita no Campeonato Brasileiro do ano passado. De forma surpreendente para quem não colhia bons resultados, foi medalhista de prata. A competição classificava as cinco primeiras colocadas para o Sul-Americano.
Foi quando começou a disputa judicial. Também presidida por Neuenschwander, a confederação sul-americana negou a inscrição. A Defensoria Pública do Paraná, trabalhando em conjunto com a de São Paulo, entrou na Justiça estadual de São Paulo e conseguiu uma liminar para inscrevê-la no torneio. As confederações recorreram, alegando que não podem inscrever uma criança com documento de sexo masculino para competir no sexo feminino.
"É uma questão meramente formal", alega a advogada Melissa Ourives Veiga, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), que vem ajudando a família paranaense. Como Maria Joaquina tem apenas 11 anos e não entrou na puberdade, os níveis de testosterona dela não se distinguem de um menino da mesma idade. Por isso, não se fala, nesse caso, de vantagem esportiva. "Se ela competisse entre os homens, ela iria ao Sul-Americano até por falta de outros atletas. Mas ela é uma menina, não seria justo com ela", continua Veiga.
O caso chegou na quarta-feira (17) às mãos do desembargador José Aparício Coelho Prado Neto, que entendeu que esse não é um caso para o TJ-SP julgar, mas para a Justiça Federal. Os pais recorreram então à Justiça Federal de São Paulo, onde, só na sexta (19), o juiz federal Marco Aurélio de Mello Castrianni também declinou competência.
Em meio ao plantão judiciário, o caso foi remetido ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que precisa decidir com urgência qual o foro correto para julgar o caso. Esse foro, por sua vez, precisa, ainda no domingo, decidir se Maria Joaquina pode ou não competir. A reportagem tentou contato telefônico com as as duas confederações e com Neuenschwander, sem sucesso.
Sobre o autor
Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.
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Sobre o blog
Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.