Bia treinou 17 anos por uma oportunidade no boxe; agora, não vai largá-la
Demétrio Vecchioli
12/11/2018 04h00
Foram 17 anos de boxe até Bia Ferreira, enfim, ter a primeira oportunidade de lutar boxe. Filha de um antigo campeão brasileiro, calçou as luvas cedo, antes mesmo de aprender a ler e a escrever. Mas boxe feminino não é futebol, jogado em todo canto. Na falta de competições e de adversárias, só foi fazer suas primeiras lutas já mulher formada. Antes tarde do que nunca. Em dois anos foram 45 lutas e só três derrotas.
Bia se orgulha: nunca entrou numa competição e saiu dela sem medalha. E quer repetir o retrospecto no primeiro grande teste da carreira daquela que tem tudo para ser a próxima grande boxeadora brasileira. Está "com sangue nos olhos" para a disputa do Mundial de Boxe Feminino, que começa quinta-feira em Nova Déli, na Índia.
"Estou confiante, porque estou tendo bons resultados. Venho de campeonatos em que consigo me manter no pódio. Esse ano fiz 28 lutas, 22 delas internacionais, e só perdi duas", orgulha-se. As duas foram para a finlandesa Mira Potkonen, com quem torce para encontrar no Mundial, para se vingar. Em 2017, seu primeiro ano lutando na seleção, ganhou 16 lutas e perdeu uma, para a russa Anastasia Belyakova. As duas algozes foram bronze na Rio-2016.
Bia também esteve no Rio, mas para apanhar. Na ocasião, era sparring de Adriana Araújo, medalhista de bronze em Londres-2012, e integrante do programa Vivência Olímpica, iniciativa do COB que oferece a jovens promessas a possibilidade de vivenciar o que é uma Olimpíada. A aposta na baiana radicada em Juiz de Fora (MG) foi arriscada, porém certeira.
Afinal, ela era um quase desconhecida no mundo do boxe, com apenas 11 lutas na breve carreira, que começou aos 21 anos, em 2014. Naquele ano, no seu primeiro Campeonato Brasileiro, levou 30 segundos para mandar a primeira rival para a lona. Não teve chance de fazer a segunda luta.
A Confederação Brasileira de Boxe (CBBoxe), que já estava de olho nela, recebeu a denúncia de que Bia já havia lutado profissionalmente em outra modalidade, o muay thai. Ela nega, diz que as fotos que a mostram numa luta sem equipamento de proteção eram de um torneio amistoso, que não tinha premiação.
"Era um campeonato entre academias e era opção usar protetor de cabeça. Eu não sabia dessa regra, pra eles era comum lutar sem, você escolhe se quer ou não. Mas como tinha a foto sem o protetor, alegaram que era profissional", explica. Na verdade, lutar muay thai foi única saída possível, até então, para quem sonhava lutar boxe e não podia.
E não era por falta de incentivo, como acontece em muitos casos. Bia frequenta os ringues desde muito cedo. Filha de Raimundo Ferreira, o Sergipe, antigo sparring de Popó, era chamada ao colo do pai para comemorar vitórias. Aos 4 anos, começou a ser treinada por ele na periferia de Salvador, onde Sergipe mantinha uma academia que formou boxeadores que depois chegariam também à seleção. A filha, que depois o acompanharia até Juiz de Fora, foi mais uma.
Sucesso relâmpago
Então professora de boxe na academia do pai, Bia impressionou quando enfim chegou às competições de boxe, aos 21 anos. Mas a tal foto lutando muay thai teve uma dura consequência: dois anos de quarentena até poder, enfim, poder ser uma boxeadora.
Aposta da CBBoxe, chegou à seleção mesmo assim. Primeiro como sparring de Adriana. Depois do fim da suspensão – e da ida da medalhista olímpica para o boxe profissional -, como titular da categoria até 60kg na seleção brasileira. E o sucesso foi instantâneo.
Logo na primeira temporada, ganhou o Prêmio Brasil Olímpico como melhor nome do boxe amador brasileiro de 2017. Também se tornou campeã pan-americana, depois bicampeã, e faturou dois torneios importantes em Belgrado (Sérvia) e Sófia (Bulgária). Este ano, levou a medalha de ouro nos Jogos Sul-Americanos de Cochabamba (Bolívia).
Todas essas conquistas, porém, são apenas uma passagem para a conclusão de mais uma meta. "Minha primeira era lutar boxe. Consegui alcançar. Depois, era sobreviver lutando boxe, poder ajudar minha família, e já consegui fazer isso. Agora a próxima é ter uma medalha olímpica".
Com poucas boxeadoras no país, a seleção brasileira hoje é formada por apenas quatro lutadoras. Todas estarão no Mundial, além de Bia, o Brasil será representado por Grazieli de Jesus, Jucielen Romeu e Gleisiele Gomes.
Sobre o autor
Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.
Está disponível para críticas, elogios e principalmente sugestões de pautas no demetrio.prado@gmail.com.
Sobre o blog
Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.