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Ex-ministro Leyser: 'O ultraliberalismo ameaça o futuro do esporte'

Demétrio Vecchioli

05/11/2018 04h00

Ricardo Leyser (divulgação/Ministério do Esporte)

Em um momento no qual se discute o futuro do Ministério do Esporte, que tende a ser fundido com os ministérios da Cultura e da Educação sob o guarda-chuva do MEC no futuro governo Jair Bolsonaro, o Olhar Olímpico vai abrir espaço, ao longo da semana, para a discussão do tema. Nesta segunda-feira, o blog publica um artigo do ex-ministro Ricardo Leyser, que serviu ao ME por 13 anos. Na pasta, foi secretário-executivo e secretário de Alto Rendimento, além de ter sido o interlocutor, pelo governo federal, na organização dos Jogos Pan-Americanos de 2007 e dos Jogos Olímpicos de 2016, ambos no Rio.

O ultraliberalismo ameaça o futuro do esporte
por Ricardo Leyser

Antes de mais nada, uma opinião geral que se aplica a todas as áreas da administração pública, não só ao esporte: sou contra superministérios. Seja da Educação, Cultura e Esporte, seja do Planejamento, Fazenda, Indústria e Comércio. Muito poder concentrado em poucas mãos não costuma ser boa prática e não favorece a eficiência ou a transparência. A última vez que tivemos monstrengos do tipo foi no Governo Collor, com final trágico.

Leia também: Fusão de esporte e educação seria boa se houvesse plano, diz professor

Estruturas de tamanho porte, abrangendo máquinas públicas distintas, com culturas próprias e necessidades completamente diferentes, tendem a gerar uma situação de menor controle e de menor especialização. Como um ministro que tem que acompanhar todas as questões da educação, da cultura e do esporte pode estar minimamente informado sobre o que se passa em sua pasta? Que profissional é capaz de conhecer em profundidade tantos temas?

O dia do superministro tem 24 horas como o de todos os mortais, ou seja, todos os temas serão olhados mais à distância e mais genericamente.

Outo ponto fundamental está relacionado ao plano de governo. Define-se o tipo e o tamanho de uma estrutura administrativa em função do plano que se adota para aquela política pública específica.

A fusão do Ministério do Esporte com o da Educação não é fruto de uma visão de desenvolver o esporte na escola. Essa é a apenas a defesa que eleitores do futuro presidente tem apresentado diante da surpresa da provável extinção do órgão especializado em esporte. Se existisse um plano para que houvesse a integração esporte-escola e a fusão fosse consequência do plano, menos mal. Mas não é isso o que se apresenta.

O que está colocado é a extinção do Ministério do Esporte no contexto de um grande enxugamento do investimento público e, particularmente, do investimento público nas áreas sociais. O objetivo é investir menos. O Estado é muito grande e gasta demais, essa é a premissa.

Portanto, mais do que a discussão sobre a melhor forma de se desenvolver políticas públicas de esporte, o que está se impondo é uma visão ultraliberal de que o Estado deve investir menos. E o Esporte sempre é uma das primeiras vítimas quando se resolve cortar gastos públicos. Não se cortam os gastos nababescos com os juros da dívida pública, que respondem por cerca de 45% dos gastos do governo. O que é cortado é o investimento em esporte, que não representa 0,5% de todo o orçamento.

Já vimos esse filme no Governo FHC, quando a política econômica neoliberal do ministro Pedro Malan inviabilizava a massificação de bons programas que existiam na Secretaria Nacional de Esporte. Os programas existiam, eram geridos por bons profissionais, que conheciam muito de esporte, mas a lógica econômica impedia que esses programas fossem oferecidos à população em escala compatível com as necessidades do país.

Tudo indica que caminhamos para uma situação parecida, com o esporte perdendo financiamento no contexto ultraliberal de enxugamento do governo. Muitos atletas que ficaram milionários com o esporte apoiam essa visão, passam a se comportar mais como milionários do que como atletas que foram apoiados pelo investimento público ao longo de suas carreiras. Esquecem-se das dificuldades gigantescas que enfrentaram para construir uma carreira esportiva e viram as costas para as novas gerações que ainda estão dando os primeiros passos rumo ao sucesso e ao reconhecimento financeiro.

Muitas críticas bem estruturadas e com bons argumentos podem ser feitas ao tamanho e ao custo do Estado brasileiro. Contudo, no caso do esporte, a situação é diversa: o Estado é fraco, o investimento é mínimo e as entidades privadas que gerem o esporte não são o melhor modelo de eficiência e transparência. Portanto, estamos falando de uma área em que não existe inchaço do Estado, muito pelo contrário.

Também, podemos olhar um pouco mais de perto as consequências dessa mudança na gestão do esporte por parte do governo brasileiro. A gestão pública é hierárquica. Ministro despacha com Presidente. Ministro fala com ministro. secretário fala com secretário. De uma simples ligação a um ofício essa é a regra: fala-se com pessoas do mesmo nível hierárquico.

Então, não teremos um ministro do Esporte despachando regularmente com o presidente da República ou buscando recursos junto ao ministro do Planejamento ou da Fazenda. Vamos rebaixar o nível de interlocução do esporte e diminuir a força política do gestor para defender investimentos.

O Ministro da Educação, Cultura e Esporte pode fazer esse papel? Em tese pode.  Mas qual assunto será tratado com mais relevância? O dia continua com as mesmas 24h de sempre, humanamente impossível que consiga tratar os temas de forma simultânea.

Uma outra dúvida importante: o Ministério do Esporte será transformado em uma única Secretaria Nacional no futuro superministério? Ou serão 2 ou 3 secretarias? A lógica do enxugamento dos gastos aponta para que seja uma única Secretaria Nacional, afinal manter a estrutura atual significaria não fazer economia nenhuma, seria trocar 6 por 5,8.

Se realmente se optar pelo desenho de se maximizar o enxugamento, teremos um enorme rebaixamento da capacidade de se formular, implementar e controlar políticas públicas de esporte.

Explico. Hoje, por exemplo, existe a Secretaria Nacional de Esporte de Alto Rendimento (SNEAR). É o órgão especializado no esporte competitivo, olímpico e paralímpico. Ele acompanha o COB, as confederações, o CPB. Gere o Bolsa Atleta. Se a estrutura do esporte for reduzida a uma Secretaria Nacional, todas as atribuições da SNEAR seriam desempenhadas por um Diretor. Hoje a SNEAR tem três diretores.

A Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem, secretaria responsável por toda a política anti-doping do país, será rebaixada a uma diretoria? Qual a condição de uma diretoria implantar toda essa política no território nacional?

Esses exemplos podem ser generalizados: tudo o que se faz agora terá que ser feito por menos gente, com menos especialização. Ou, o que é mais provável, se fará menos, muito menos. Ora, se o que se faz hoje ainda é insuficiente, o que se esperar do futuro? Infelizmente, temos que ser pessimistas.

E pelo lado do controle, tão caro ao discurso conservador alinhado ao novo presidente? Uma estrutura menor e menos especializada, dentro de um gigantesco superministério de secos e molhados, é um caminho certo para o descontrole e a corrupção. As entidades privadas de gestão do esporte terão menos acompanhamento e menos vigilância.  É tudo o que alguns representantes da velha cartolagem sonham.

E os eventuais ganhos com a proximidade com a Educação? Podem existir? Não é bom que esporte e educação andem juntos? Sim, do ponto de vista genérico, é bom esporte e educação andarem juntos. Mas vamos olhar com mais profundidade?

Nem todo tema da política pública de esporte tem relação com a educação. Alguns temas têm lógicas completamente distintas. Por exemplo, a lógica do esporte de rendimento não pode ser adotada pelo esporte na escola. São antagônicas. O esporte de rendimento é para poucos, a educação é para todos. Esporte e educação são grandes parceiros, mas nem todo esporte está contido nessa parceria. E as modalidades? Qual o papel da escola no desenvolvimento do hipismo? Do tiro? Da vela? Alguns esportes podem se desenvolver mais nos clubes e nas forças armadas do que na escola. Por isso, temos que conhecer mais da proposta de junção dos Ministérios para saber se o potencial de cooperação pode ser mesmo aproveitado.

O que vejo ao final, é um rebaixamento da política pública do esporte. Para o liberalismo investir em esporte é desnecessário. Para essa visão de mundo, não há que se dar prioridade ao esporte. Teremos menos esporte e mais armas.

Desejo sorte ao gestor que será escolhido pelo presidente eleito. Vai ter muito mais dificuldades para implantar seus projetos do que as que tivemos nos Governos Lula e Dilma. Estará em suas mãos a tarefa de reverter nosso pessimismo e fazer uma grande gestão para o esporte nacional.

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Sobre o autor

Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.

Está disponível para críticas, elogios e principalmente sugestões de pautas no demetrio.prado@gmail.com.

Sobre o blog

Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.


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