Dinheiro da Timemania banca eventos com jantares de gala e concurso de musa
Demétrio Vecchioli
19/04/2018 04h00
Musas dos clubes durante o congresso. Regulamento exige que, durante três dias, elas circulem usando "trajes próprios" uma vez que elas "estarão sendo observadas pelos jurados".
Em um momento de enxugamento de gastos em confederações e no Comitê Olímpico do Brasil (COB), que reduziu de forma considerável o tamanho e o glamour do Prêmio Brasil Olímpico, por exemplo, o sindicato dos clubes há quatro anos vem gastando todo o dinheiro federal destinado a ele, mais de R$ 2,5 mi ao ano, em oito dias anuais de congressos, com direito a jantares de gala, concursos de musas e sorteio de viagens internacionais aos cartolas. Tudo isso com dinheiro que, em tese, deveria servir para fomentar o esporte ou para formar dirigentes esportivos mais capacitados. O Ministério do Esporte, que apertou o certo contra o COB e passou a exigir um relatório de gastos detalhados dos comitês, não tem nenhum mecanismo para fiscalizar ou ao menos regulamentar como o sindicato investe o que recebe da mesma fonte. Líderes dos clubes, o Pinheiros se negou a comentar a situação, enquanto o Minas Tênis Clube disse que "não coaduna com ações que divergem do desenvolvimento do desporto nacional".
Só no ano passado, a pouco conhecida Federação Nacional dos Clubes Esportivos (Fenaclubes) gastou R$ 2,5 milhões em verbas públicas na realização de dois congressos, um por semestre. Ainda que apenas 54 clubes tenham participado da última assembleia, um somatório de 1.553 pessoas, segundo o sindicato, teriam estado presentes nos dois congressos. Isso significa um custo de R$ 1,6 mil por cabeça, sem contar transporte (por conta) e o investido em shows de artistas do porte de Zeca Pagodinho e Zezé di Camargo & Luciano, donos de dois dos maiores cachês do país. Como comparação, a inscrição para o Congresso Brasileiro de Gestão do Esporte, da Associação Brasileira de Gestão do Esporte (ABRAGESP), do ano passado custava R$ 300, para três dias de eventos e 13 programações de capacitação – contra seis do congresso dos clubes, em quatro dias.
Responsável por destinar os recursos, arrecadados pela Timemania, o Ministério do Esporte não fiscaliza a aplicação do dinheiro. Um privilégio que não têm o Comitê Olímpico (COB), o Paraolímpico (CPB) e o Brasileiro de Clubes (CBC), que recebem recursos por mecanismo semelhante e precisam ter suas contas votadas no Conselho Nacional do Esporte. A Fenaclubes sequer publica um balanço financeiro auditado em seu site.
Congresso
Na semana que vem, durante os quatro dias do feriadão do Dia do Trabalho, o primeiro congresso do ano será em Campinas, cidade-sede da entidade, mais exatamente no Hotel Royal Palm Plaza. Em um só contrato, o sindicato vai pagar R$ 826 mil à rede de hotéis. Já havia sido assim no ano passado, quando cada um dos 750 participantes, que não necessariamente ficaram três diárias (a primeira delas é restrita a alguns cartolas), custou R$ 600 aos cofres públicos em alimentação – sem contar bebidas. No segundo semestre, em novembro, vai acontecer outro congresso, esse no Windsor Barra, no Rio. Mais R$ 723 mil, pagos com recursos federais.
No primeiro semestre de 2017, só uma palestra do velejador Amyr Klink custou mais de R$ 21 mil. Já a empresa responsável por montar palco e iluminação recebeu outros R$ 118 mil – não há informações no site sobre como se deu a escolha pela empresa contratada, que é da Paraíba. Somando tudo, um congresso de quatro dias (três diárias) saiu por R$ 1,3 milhão para os cofres públicos. Valor semelhante foi gasto no segundo semestre, para um total de R$ 2,565 milhões em congressos no ano passado.
Como comparação, da mesma fonte de recursos (repasses de loteria federal), a Confederação Brasileira de Remo terá R$ 2,1 milhões em 2018. As confederações de tiro com arco, esgrima, ciclismo, desportos na neve, golfe, tênis de mesa, badminton, rúgbi, triatlo, hóquei sobre a grama, basquete, desportos no gelo, escalada, beisebol, skate, surfe e karatê também têm orçamento menor, para toda a temporada 2018, do que o gasto com os congressos dos clubes.
Arialdo, à direita, entrega prêmio de viagem a "qualquer lugar do mundo" para dirigente gaúcho
O congresso de Campinas
Em quatro dias, serão três jantares com atrações musicais e homenagens. Palestras serão sete, incluindo uma de um mágico, com o tema: "A mágica não foi feita para enganar, e sim para divertir as pessoas". Há também previsão de uma palestra motivacional, uma do ex-jogador Cafu e outra do ex-judoca Flávio Canto. A programação prevê apenas um horário para oficinas técnicas de capacitação. A programação completa pode ser conferida aqui.
Pelo que se vê no site da Fenaclubes, o grande momento do congresso deverá ser o concurso "Musa dos Clubes Sociais do Brasil", que, segundo o sindicato, tem o objetivo de "divulgar a beleza e a elegância da mulher que frequenta os clubes, estabelecendo, assim, um maior intercâmbio social". A Fenaclubes não paga as passagens, mas garante estadia e alimentação para as 21 candidatas, que precisam obrigatoriamente serem solteiras e devem viajar acompanhadas pela "diretoria social" do clube. Considerando o custo médio de R$ 1,6 mil por participante, essas 42 pessoas custam R$ 67 mil em recursos da Timemania. O valor é superior ao custo total do congresso anual da maior parte das confederações olímpicas.
No mesmo jantar, na segunda-feira, serão divulgados os vencedores do concurso de fotografias e do sorteio de uma viagem "para qualquer lugar do mundo" – o regulamento do concurso permite ao cartola vencedor levar R$ 10 mil em dinheiro mesmo.
Para garantir o entretenimento dos participantes, os artistas que se apresentam nos congressos são escolhidos pelos próprios cartolas. Segundo a Fenaclubes, essa é uma foma de garantir "atrações de grande qualidade e que estejam alinhadas com a expectativa dos participantes". No segundo semestre do ano passado, o escolhido (e contratado) foi Zeca Pagodinho. Em Campinas, quem vai cantar no jantar de gala é a dupla sertaneja Zezé di Camargo & Luciano, que não costuma cobrar menos de R$ 200 mil para tocar. Ainda haverá show de Benito de Paula na sexta e uma "atração surpresa" para a noite de segunda-feira.
O que é a Fenaclubes
É importante explicar a diferença entre a Fenaclubes e o CBC. Sindicato patronal dos clubes sociais (esses que têm piscina para sócios e baile de carnaval), a Fenaclubes tem a prerrogativa de "representar, perante as autoridades administrativas e judiciárias, os direitos e interesses gerais da categoria". Também é quem negocia acordos coletivos de trabalho com o sindicato dos funcionários dos clubes, desde os maiores do país até os de pequenas cidades. Já o CBC reúne a nata dos clubes e tem como foco o desenvolvimento do esporte em alto rendimento – por isso, está na mesma linha hierárquica do COB e do CPB.
Até agosto de 2015, era o CBC o beneficiado por uma parcela de 1% da receita bruta da Timemania, loteria criada para ajudar os clubes de futebol, que ficam com uma fatia de 22%. De 2001 a 2013 o CBC foi presidido por Arialdo Boscolo, que não pôde mais se reeleger. No ano seguinte, em 2014, ele assumiu o comando "executivo" da Fenaclubes, entidade que ele já presidia, mas que era incipiente. Depois, em 2015, conseguiu que aquela verba, que chega a R$ 3 milhões ao ano, passasse a cair na conta do sindicato e não mais do comitê. A alteração entrou como um "jabuti" no texto da lei que criou o Profut.
Fenaclubes gastou R$ 1,8 milhões em sede própria, mas divide funcionários com o vizinho CBC
Para que deveria servir o dinheiro
Em 2009, em uma reportagem da Folha, Arialdo, então no CBC, se disse surpreso que o 1% destinado ao comitê não fosse muito dinheiro, argumentando que então não haveria como repartir o dinheiro entre os clubes – sobraria muito pouco para cada um. Por isso, aplicaria tudo em "dois ou três eventos por ano". Em 2015, exatamente quando o CBC passou a distribuir uma quantia volumosa de dinheiro da Lei Piva aos clubes, que poderia ser engordada pelos até R$ 3 milhões da Timemania, o dinheiro mudou de dono e passou a cair novamente na conta de uma entidade sem condições de reparti-lo.
Três meses depois da modificação da Lei da Timemania, em novembro de 2015, a Fenaclubes realizou uma assembleia. Alegando que "se recursos fossem repassados aos milhares de clubes existentes no país, o valor de cada projeto seria irrisório", exatamente como em 2009, Arialdo solicitou aos clubes que a diretoria mesma gerisse as verbas. Não é isso que diz a lei, que determina que a verba, que vai da Caixa para o Ministério do Esporte e deste para a Fenaclubes, deve ser usada "para as ações dos clubes sociais, de acordo com os projetos aprovados pela Fenaclubes".
Mas, assim como ocorria no CBC, nunca houve apresentação de projetos por parte dos clubes. Afinal, por sugestão de Arialdo, ficou decidido que o dinheiro seria utilizado "para o desenvolvimento de ações aos clubes esportivos sociais, por meio da capacitação de dirigentes e colaboradores do segmento clubístico, com vistas ao aperfeiçoamento da administração e gestão dos clubes".
Para tanto, deveriam ser realizados "congressos, fóruns, conferências, cursos, palestras técnicas e motivacionais, feiras, exposições, eventos, concursos e outras formas de difusão de conhecimento, nas áreas esportiva, cultural, social e de lazer". Mas logo em abril de 2016 a proposta mudou, com a lista de eventos reduzida a dois: um congresso no primeiro semestre, outro no segundo. Isso foi formalmente apresentado ao Ministério do Esporte em forma de "Plano Plurianual para o Ciclo Olímpico 2016-2020". Não houve manifestação contrária até hoje – nem favorável.
Desde então, ainda que a lei fale em "ações dos clubes sociais", é com dois congressos anuais que a CBC aplica tudo que recebe pela Timemania.
Outras fontes
A Fenaclubes não é exatamente uma entidade de poucos recursos. Tanto que os shows contratados são pagos com as taxas sindicais obrigatórias dos clubes. Questionada pelo Olhar Olímpico, a entidade não respondeu quantos filiados adimplentes tem. Apenas informou que tem uma "base inorganizada dos 13.826 clubes". E que, entre 2015 e 2017, eles geraram R$ 2,3 milhões em contribuições sindicais e confederativas.
O grosso desses recursos foi aplicado na construção de uma sede própria, que custou R$ 1,8 milhões e foi inaugurada no fim do ano passado. O prédio fica colado com o do CBC, no Bairro das Palmeiras, em Campinas, reforçando uma proximidade que não é apenas geográfica entre as duas entidades. Nos bastidores, Arialdo é sempre apontado por fontes do Olhar Olímpico como "o dono" do CBC – um ex-funcionário do comitê o comparou a Marco Polo Del Nero na CBF. Rotineiramente, é ele quem preside as assembleias do CBC.
Ao pedir por um contato da assessoria de imprensa no telefone da Fenaclubes, a secretária pediu que a reportagem ligasse para a assessora do CBC, que é registrada como CLT no comitê. Minutos antes, ela havia negado trabalhar para o sindicato. Depois, deu encaminhamento aos pedidos.
Os responsáveis
Há menos de um mês, o Pinheiros reuniu a nata da cartolagem de clubes do país para um almoço à beira da piscina. Em seu site, relatou "um dia histórico para o esporte brasileiro". "Sentimo-nos na obrigação de unir os clubes formadores de atletas para aprimorarmos os processos de gestão a fim de construirmos um novo modelo para o esporte nacional", afirmou o presidente Roberto Cappellano.
Naquele momento, os principais clubes do país lançavam dois candidatos para as vagas independentes do Conselho de Administração do COB. Tanto Carlos Osso, do Pinheiros, quanto Sérgio Rodrigues, do Minas Tênis Clube, foram eleitos. "Acredito que eu possa ajudar muito na nova gestão do COB, principalmente em relação à transparência e à modernização que a entidade já está implantando", disse Osso à época.
O Olhar Olímpico procurou os dois clubes, líderes naturais do segmento clubístico, para comentar a situação da Fenaclubes. O Pinheiros não quis comentar a situação específica do sindicato, alegando que participa de "inúmeras" entidades e que "sempre preza pela lisura".
Outro lado
A Fenaclubes fez questão de ressaltar o artigo 592 da CLT, autoriza entidades sindicais, como ela, a utilizar o dinheiro arrecadado para realizar congressos. Questionada, a entidade não detalhou quanto recebeu da Timemania ano a ano, informando apenas o valor global: R$ 6,3 milhões entre agosto de 2015 e dezembro de 2017.
O sindicato também lembrou que a decisão de utilizar a verba da Timemania em congressos foi amparada por uma série de procedimentos, já citados na reportagem, e que o plano plurianual foi protocolado no Ministério do Esporte. O ME, por sua vez, não confirmou – nem negou. A Fenaclubes não respondeu por que publica balanço financeiro em seu site.
"Dentro do Congresso não temos somente palestras. Esse é um evento que valoriza todos os setores dos clubes nas boas práticas de gestão. O Congresso Brasileiro de Clubes é acima de tudo um mecanismo de capacitação e motivação que faz com que os clubes voltem a ter uma atuação mais eficaz em todas as suas áreas, inclusive na formação esportiva", alegou Arialdo.
O Ministério do Esporte não respondeu nenhum dos questionamentos feitos pelo Olhar Olímpico. Não informou se fiscaliza os recursos, se pretende fiscalizar, ou sequer quanto foi repassado por ano à Fenaclubes. Também não quis comentar a reportagem. Em breve nota, citou o trabalho de regulamentação da Lei Piva e disse que "segue trabalhando na regulamentação dos repasses às instituições que ainda não estão enquadradas nas novas práticas de gestão adotadas pelo Governo Federal".
Questionado pelo Olhar Olímpico, o Minas Tênis Clube fez o seguinte comentário: O Minas Tênis Clube, entidade sociodesportiva fundada há 82 anos, tem como princípios norteadores de atuação a transparência e a governança. Sendo assim, na relação com as entidades que regem o esporte no país, o Clube sempre buscou compartilhar seus conceitos de compliance, que não coadunam com ações que divergem do nosso objetivo primordial, que é o desenvolvimento do desporto nacional.
Já o Pinheiros respondeu assim: Diante dos princípios éticos e morais que o Pinheiros sustenta como essência do esporte, ratificamos que o clube participa de inúmeras associações, federações, confederações e comitês, sempre prezando a lisura, a transparência e a democracia. O Pinheiros apoia as iniciativas coerentes aos seus objetivos centenários em favor do esporte, cultura e lazer, buscando atender com excelência as necessidades de associados e atletas.
Sobre o autor
Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.
Está disponível para críticas, elogios e principalmente sugestões de pautas no demetrio.prado@gmail.com.
Sobre o blog
Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.