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Como R$ 65 mi para 'formar atletas' foram parar em 2 agências de viagem

Demétrio Vecchioli

24/10/2017 04h00

Se cabe ao Comitê Olímpico do Brasil (COB) administrar a utilização dos recursos oriundos das loterias federais para aprimorar o esporte de alto rendimento olímpico e ao Comitê Paraolímpico Brasileiro (CPB) cumprir o mesmo papel no paraolímpico, a responsabilidade de formar atletas no Brasil, dentro da Lei Pelé, é do Comitê Brasileiro de Clubes (CBC). O órgão, que mudou recentemente seu nome de "confederação" para "comitê", para se equiparar aos demais, é pouco conhecido. Mesmo assim, tem uma carteira volumosa, abastecida com 0,5% de tudo que é arrecadado nas loterias federais. O problema é que todo o dinheiro que estava à disposição dos clubes no edital deste ano vai para apenas duas agências de viagem.

Quem acompanha mais de perto o esporte olímpico brasileiro deverá começar a notar a explosão de "Campeonatos Brasileiros Interclubes", algo que inexistia até então no calendário nacional. Serão realizados mais de 50 desses torneios, todos de base, que vão ocupar o espaço de competições organizadas pelas confederações olímpicas, sendo parte delas entre seleções estaduais. Só que o dinheiro não vai nem para os clubes, nem para os atletas. Apenas para a Uatumã Empreendimentos Turísticos (Tucunaré Turismo) e a Meru Viagens.

A primeira, localizada em Manaus, vai receber R$ 35,373 milhões ao longo dos próximos quatro anos (temporadas de 2017 a 2020). A segunda, que fica em Brasília, ficou com um lote de R$ 31,107 milhões. Cada uma delas deverá receber, em recursos públicos, mais do que qualquer confederação brasileira ganhará pela Lei Agnelo/Piva no mesmo período. O processo licitatório, por pregão presencial, foi realizado em setembro, em Campinas (SP), e contou com 10 agências. Importante ressaltar que o Olhar Olímpico não encontrou qualquer indício de irregularidade nesse processo, de uma transparência incomum no esporte brasileiro.

Apesar de ter firmado substanciais 72 termos de cooperação com os clubes que participaram do edital, a gestão dos recursos não será deles. Os clubes esportivos (Paulistano, Minas Tênis Clube, Flamengo e Fluminense, entre outros) se comprometem a organizar determinada competição por quatro anos, enquanto que o CBC se responsabiliza por passagens aéreas e hospedagens dos atletas deste seletíssimo grupo de clubes, de apenas 62 membros. A verba não paga a realização da competição, responsabilidade de cada confederação e do clube anfitrião, apenas as viagens de parte dos competidores.

Uma das competições que está sendo realizada com recursos do CBC é a Liga de Desenvolvimento do Basquete (LBD), que até o ano passado era bancada via convênio com o Ministério do Esporte. Flamengo, Círculo Militar de Curitiba e Paulistano recebem os jogos do torneio, que envolvem apenas 10 equipes, sendo a maior parte delas do citado restrito grupo. São apenas seus 41 filiados e 20 "vinculados" que têm direito a receber passagens e hospedagem nas competições realizadas pela CBC. Os demais – aí incluídos Mogi, Bauru, Liga Sorocabana e Vitória, entre outros -, se quisessem disputar o torneio, deveriam arcar com os custos.

A situação se reflete nas mais diversas modalidades. No vôlei, por exemplo, há apenas 16 vagas em cada edição do Brasileiro Interclubes e a prioridade é dos clubes filiados ao CBC. Se eles preencherem todas as vagas disponíveis, não haverá espaço para as melhores equipes do país, uma vez que pouquíssimas delas são os chamados "clubes sociais" – apenas Pinheiros, Fluminense e Minas Tênis Clube. Esse cenário, aliás, já foi visto no Brasileiro Feminino Sub-16.

De acordo com o CBC, a ideia é atrair cada vez mais clubes para a esfera do comitê, seja como filiado (o que exige uma estrutura física e de pessoal grande para prestar contas dos convênios) ou como vinculados. "O dinheiro para preparação de atletas está totalmente disponível para os clubes que tenham interesse e condições para acessá-los. O CBC sempre esteve aberto a novas filiações", informa o órgão, que, entretanto, não cita, no seu site oficial, a possibilidade de clubes serem vinculados a ele.

Por este modelo, que já atraiu o Basquete Cearense e o Franca Basquetebol, para ficar só em uma modalidade, os clubes não podem firmar convênios para contratação de técnicos e aquisição de equipamentos, por exemplo, mas podem participar de competições com os recursos disponíveis a partir do edital deste ano, tema desta matéria.

De onde vem o dinheiro – Diferente do COB e do CPB, beneficiados pela Lei Agnelo/Piva com 1,7% e 1,0% dos recursos das loterias federais, o CBC também recebe uma porcentagem do que movimentam as loterias (0,5%), mas essa transferência é regulamentada pela Lei Pelé. O fato é pouco conhecido por ser recente. Ainda que esta seja uma questão que vem desde 2004, só em 2014 é que todas as leis, normas e decretos estavam prontos para que o CBC realizasse seu primeiro edital de chamamento. Desde então foram sete chamamentos de projetos, sendo os cinco primeiros entre 2014 e 2015.

Também diferente do COB, que repassa recursos para as confederações esportivas aplicarem em realização de competições, viagens internacionais, contratações de técnicos, manutenção da entidade ou mesmo para bancar equipe disciplinar, o CBC abre editais dentro de regras predefinidas. O do ano passado, por exemplo, era para contratação de técnicos e auxiliares. O Corinthians foi um dos que enviou projeto e vai receber mais de R$ 2,3 milhões ao longo de todo o ciclo olímpico para pagar 20 profissionais.

No edital deste ano só poderiam ser apresentados projetos para os Campeonatos Brasileiros Interclubes, com o CBC se comprometendo a pagar os custos aéreos e de hospedagem dos atletas dos clubes filiados a ele. Algumas dessas competições, inclusive, são uma adaptação à realidade. É o caso por exemplo do "Campeonato Brasileiro Interclubes de Vôlei de Praia", em uma modalidade onde, historicamente, as duplas não são associadas a clubes.

Questionado sobre o modelo de edital adotado para esse ano, a CBC disse que essa definição é realizada "por meio de uma ampla discussão com os clubes filiados e vinculados, que se dá por meio do Seminário Nacional de Formação Esportiva, evento anual que promove o debate da Política de Formação de Atletas desenvolvida pelo segmento clubístico".

Quanto ao motivo de fazer a contratação direta das empresas e não repassar o dinheiro aos clubes, explicou que, assim "otimiza a aplicação dos recursos públicos, levando em conta o princípio da economicidade e demais princípios da administração pública."

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Sobre o autor

Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.

Está disponível para críticas, elogios e principalmente sugestões de pautas no demetrio.prado@gmail.com.

Sobre o blog

Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.


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