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Olhar Olímpico

'Muro do Doria' na USP causou a morte de 58 pássaros em um ano

Demétrio Vecchioli

18/06/2019 04h00

Prefeitura de São Paulo e USP dizem que as obras do muro da raia olímpica da USP estão paralisadas há seis meses, desde dezembro "à espera de um necessário ajuste no projeto de instalação". Na verdade, a suspensão das obras é um cobrança do Ministério Público (MP), preocupado com a alta mortandade de pássaros desde que o muro de vidro foi instalado e o antigo, de alvenaria, derrubado.

Em 12 meses, 58 aves morreram depois de se chocarem contra a nova parede, construída sem licença ambiental, contra a recomendação de secretarias do Meio-Ambiente e descumprindo uma promessa feita à 3ª Promotoria de Justiça do Meio Ambiente. No MP, um parecer técnico aponta a reconstrução do muro de alvenaria como "solução mais pertinente" para o caso. 

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Desde que os primeiros muros de alvenaria foram derrubados, em março do ano passado, para que o muro de vidro fosse inaugurado a toque de caixa nos últimos dias de João Doria (PSDB) como prefeito de São Paulo, as mortes foram sendo informadas à USP, à prefeitura e ao MP pela consultoria Ambiente Brasil, contratada pela própria USP para produzir relatórias mensais.

No primeiro mês morreram uma cambacica, um suiriri e um sabiá-laranjeira, de acordo com o relatório. Em maio foram outras cinco aves, de cinco espécies diferentes. Mês a mês, o número de registros cresceu até o pico de oito mortes em dezembro. Só este ano, até o fim de março, quando o relatório deixou de ser realizado, 18 aves morreram ao se chocarem contra as placas de vidro.

Procurados para comentar a reportagem, a prefeitura de São Paulo, a USP e o governador João Doria não responderam as questões feitas pela reportagem por e-mail. O MP não quis comentar porque o inquérito segue em andamento.

João Doria inaugura obra da raia da USP (HELOISA BALLARINI/SECOM)

Inquérito no MP

Promotoria de Justiça e Meio Ambiente tentou evitar as mortes, instaurando um inquérito ainda em julho de 2017, logo depois que Doria convidou a imprensa para anunciar a iniciativa de construir o muro de vidro, obra que seria bancada por empresas "parceiras". Foram diversos despachos do MP à prefeitura e à USP solicitando informações, quase sempre sem resposta. 

Em dezembro de 2017, o MP exigiu uma reunião com a reitoria da USP, quando foi informado que a universidade ainda não havia formalizado nenhum termo de doação com as empresas que haviam se inscrito no edital aberto em junho. Consta na ata daquele encontro: "O senhor superintendente, professor Osvaldo Nakao, se comprometeu a enviar o projeto aprovado para a análise prévia do MP antes da implantação dos vidros".

Mas isso não aconteceu. A promotora Claudia Cecília Fedell ficou sabendo pela imprensa que as obras estavam avançadas. No mesmo dia, 8 de fevereiro de 2018, enviou ofício à USP exigindo uma resposta em 48 horas sobre se as obras haviam começado.

A resposta veio oito dias depois. "Esclareço que a construção verificada no local consiste em 'protótipo' para viabilizar a pesquisa e realização das melhores técnicas, dentre as mais variadas e disponíveis no país, motivo pela qual várias películas estão sendo objeto de estudos até a definição da que se mostrar mais adequada para instalação dos vidros", escreveu o prefeito do campus da USP no ofício. Uma semana depois, o Estadão publicou que a obra estava "em fase final de construção". Os vidros foram instalados sem película.

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As mortes

O novo muro foi inaugurado por Doria em uma quarta-feira, 4 de abril. Dois dias depois, ele renunciaria para concorrer ao cargo de governador, para o qual foi eleito. Em 15 meses na prefeitura, o muro da USP foi sua maior obra.

Previsto para ter mais de 2 quilômetros, o muro separa a raia olímpica da USP da marginal do Rio Pinheiros. Paralisado na metade, tornou-se também uma barreira para as aves que entram e saem do campus em direção ao Parque Villa-Lobos, na outra margem do rio. De acordo com o Centro de Estudos Ornitológicos, o campus abriga 162 espécies de aves, das quais 16 ameaçadas de extinção.

Estudo juntado aos autos do inquérito do MP antes mesmo da inauguração do muro já apontava que a solução adotada no projeto não evitaria que as aves voassem de cara no vidro transparente. O instituto norte-americano Cornell Lab of Ornithology recomenda que a distância mínima entre as adesivos deve ser "um palmo grande mão".

A arquiteta Joia Bergamo, amiga pessoal de João Doria e responsável, por exemplo, pela polêmica reforma no Palácio dos Bandeirantes, foi quem doou à USP o projeto do novo muro. E propôs que a cada 3,5 metros de vidro houvesse um adesivo de gavião. Para tanto, mostra o MP, listou "muros de condomínio" onde a solução, segundo ela, foi eficiente. No fim das contas, o que era um "protótipo" virou o muro.

Após o primeiro relatório apontar a morte de quatro aves, a USP agiu. Se antes os adesivos eram em um vidro sim, outro não, a partir de maio o número dobrou: um por vidro. As mortes continuaram. Já em maio a consultoria contratada pela USP avisou que não era suficiente. "No muro já instalado, observa-se a necessidade de medida adicional de proteção à avifauna, de forma que possibilite a esta identificar o muro de vidro como uma barreira".

As mortes continuaram, e os avisos também: "Os registros de acidentes mostram que a nova medida mitigatória adotada não é suficiente, uma vez que três acidentes foram registrados em locais com dois adesivos em cada placa. A porção do vidro sem película continua de um tamanho em que as aves consideram suficiente para ultrapassagem sem colidir com os obstáculos", diz o relatório de junho.

O aviso vinha de várias partes. O Centro de Manejo de Fauna Silvestre, da Secretaria Estadual de Meio-Ambiente de São Paulo, também se dizia contra o muro "em decorrência dos impactos ambientais negativos ocasionados sobre o grupo da avifauna". Em junho, o órgão propôs a retirada da "transparência total" dos vidros. A mesma opinião tinha a Divisão de Fauna da Secretaria Municipal de Meio Ambiente. 

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Obras paralisadas

Em abril, o Olhar Olímpico mostrou que as obras do muro estavam paralisadas desde dezembro do ano passado. Só metade do muro de vidro foi entregue. Na USP, funcionários e frequentadores da raia não tinham ideia de por que a obra parou. Prefeitura e universidade também não detalhavam os motivos e as empresas supostamente relacionadas à obra diziam não estar autorizadas a falar.

Agora vem a resposta. A obra parou por ordem do MP. Em 17 de dezembro, no gabinete da 3ª Promotoria de Meio Ambiente da Capital, o prefeito do campus da USP, Hermes Fajersztajn informou que uma das medidas que estavam sendo tomadas era a instalação de um filme de PVC perfurado, colocado em 200 metros de muro.

O promotor George Curi Meserani não ficou satisfeito. "Solicitou que não se procedesse mais a demolição dos muros de alvenaria, a fim de evitar maiores danos à aves", segundo consta na ata. Hermes na sequência se comprometeu a paralisar as demolições e, consequentemente, as obras.

Na mais recente movimentação do inquérito, consultado pela reportagem na semana passada, um parecer técnico do próprio MP aponta que "o emprego de medidas que retirem a transparência do muro de vidro vai de encontro à razão de sua implementação, ou seja, a possibilidade de visualizar o interior da universidade a partir do exterior". E sugere, então, que a "solução mais pertinente" é reconstruir o muro de alvenaria.

 

Sobre o autor

Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.

Está disponível para críticas, elogios e principalmente sugestões de pautas no demetrio.prado@gmail.com.

Sobre o blog

Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.