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André Brasil: 'Se não sou olímpico nem paraolímpico, o que eu sou?'

Demétrio Vecchioli

27/04/2019 04h00

André Brasil, um dos principais nomes da história do esporte paraolímpico (Jonne Roriz/MPIX/CPB)

A paralisia infantil diagnosticada aos 6 meses fez André Brasil crescer com má formação na perna esquerda, visivelmente mais fina que a direita, e no pé esquerdo, menor do que o direito. Nadador convencional durante toda a juventude, ingressou no chamado "sistema" paraolímpico em 2006, depois de ser inicialmente considerado inelegível e recorrer. Em treze anos, ganhou 14 medalhas olímpicas e 35 mundiais. Tornou-se o nadador paraolímpico mais rápido do mundo.

Depois de todo esse tempo, o pé é o mesmo. A deficiência, também. Mas, aos 34 anos, André foi sumariamente aposentado. Na quarta (24), com base em um manual atualizado no começo do ano passado, uma avaliadora voluntária do Comitê Paraolímpico Internacional (IPC, na sigla em inglês) entendeu que o pé esquerdo dele tem propulsão "moderada", e não "mínima", como se entendia antes. Ele recorreu, outra banca o avaliou em seguida e deu o mesmo parecer.

A mudança de entendimento alterou a classificação funcional do brasileiro nos nados de crawl, borboleta e costas (suas especialidades). Ele deveria ser promovido de classe, mas já estava na última, a S10. Na prática, acabou empurrado para fora do sistema paraolímpico, uma vez que no nado de peito, no qual ele segue apto, seus resultados são de nível significativamente mais baixo.

"Se eu não sou atleta paraolímpico, e também não consigo chegar a uma seleção para atletas sem deficiência, no esporte olímpico, o que eu sou?", pergunta André em entrevista ao Olhar Olímpico concedida na manhã de quinta-feira (25) no Centro Paraolímpico, em São Paulo. O nadador (ou ex-nadador?) havia ido até lá para competir em etapa do Circuito Mundial. Agora, não sabe mais quando terá vontade de cair na piscina. 

André Brasil com medalha de bronze olímpica

Como você se sente ao ser considerado inelegível para a natação paraolímpica?

Me sinto num limbo. Não chego no viés de um esporte olímpico e nesse momento não estou no viés do esporte paraolímpico. O que eu sou? Uma pessoa com deficiência que pratica esporte? Como um atleta com status permanente há 14 anos conquistou tudo isso e hoje é deixado de fora? Então tudo que eu fiz não valeu? Era mentira? O cara que ficou em segundo em 2008 seria campeão, já que eu tô fora do sistema?  Paira na minha cabeça a mesma dívida que eu tinha há 14 anos: se eu não sou atleta paraolímpico, e também não consigo chegar a uma seleção para atletas sem deficiência, no esporte olímpico, o que eu sou?

Você segue elegível no nado de peito. É possível se dedicar mais a esse estilo e continuar na natação paraolímpica?

As provas que eu tenho resultado são outras provas. O peito nunca foi carro-chefe. Por mais que eu treine, me dedique, dentro da minha limitação, sei que posso chegar em determinado tempo. Mas isso vai me fazer ser o 30º, 40º do mundo. Aos 35 anos, será que isso vai valer o empenho, a dedicação, abdicação de mutas coisas?

Aos 34 anos, é o fim da sua carreira?

Hoje eu tenho sonhos ainda, quero mostrar muita coisa. Passei por uma cirurgia no ombro, estou longe da minha melhor forma, mas ainda queria mostrar o que é o esporte de verdade. Essa capacidade de superação. Eu sempre falo que abomino essa palavra: superação. Acordar no mundo que a gente vive todo dia é superação. Hoje o que eu tenho é nem o direito de poder falar que eu quero me aposentar hoje, amanhã, ou daqui dois anos. Eu sinto que me foi tirado o direito de escolha.

Você está magoado? Com quem, com o que?

Eu não digo mágoa. Eu tô indignado com o formato que a gente tem hoje de classificação. Não desgosto das pessoas. A Marcela, que a classificadora argentina que está aqui, é a classificadora que estava lá em 2005. O que mudou no sistema para que uma pessoa com uma deficiência constatada fique de fora do esporte para deficiente? Por que a gente não pega a tecnologia e usa de uma forma benéfica para o esporte?

Como é uma avaliação?

São duas pessoas. Uma da área técnica, fisioterapeuta ou médico, que avaliam a deficiência pela deficiência. Ele vai te avaliar como um clínico, aquilo que ele vê. Vamos para a água. Um técnico, que tem conhecimento sobre a natação, vê o que foi trazido do lado de fora para a piscina e avalia aquilo comparativamente com o que ele tem de histórico. São calculados os pontos e eles dão o parecer ao atleta. Eu ontem (quarta) fiz duas bancas. A que estava programada minha classificação e a segunda foi um protesto.

Qual é exatamente a sua deficiência?

Eu tenho uma paralisia infantil que me deixou com uma limitação do lado esquerdo da perna, mais visível do joelho para baixo. O impulso nervoso que leva a informação até o músculo para fazer o movimento ele chega muito diferente da perna boa do que na perna esquerda. Com relação à força, a diferença é gritante.

E como isso foi avaliado na sua banca?

Se meu pé, que tem quase nada de movimento, mexe, é porque a perna inteira se movimenta. Se você avalia de forma mais grotesca, mais objetiva, de uma forma neural, você vê que a limitação existe. O movimento não gera propulsão para frente. O manual de classificação funcional fala que um 'mínimo movimento de propulsão' é dois pontos, não três, que está escrito 'moderado'. "Ah não, mas a interpretação diz que a propulsão já é no três". Mas quem disse isso? Porque não está escrito na regra. A sua interpretação é uma, de outro é outra, de um terceiro é outra.

André Brasil disputa Mundial Paraolímpico de 215 (Jonne Roriz/MPIX/CPB)

Falta uma padronização das regras?

Isso é tornar cada vez mais subjetivo o que já era subjetivo. Se as pessoas não entendiam nada, do jeito que se está vão entender muito menos. Hoje a gente tem o que a gente tem, referências, ídolos, graças a esse sistema. Quando você pega a prova dos 100m livre no Rio (2016, na classe S10), você vê oito caras chegando com menos de um segundo de diferença entre eles. Onde há disparidade nisso? Onde há um atleta que tira vantagem?

Você acha que de alguma forma você teve vantagem por sua deficiência ser, agora pela avaliação do IPC, menor do que a dos outros?

Isso são "skills", habilidades. Se a deficiência fosse maior ou menor, a gente não teria cinco ou seis atletas disputando uma medalha de ouro. Eu fui prata por 20 centésimos nos 100m livre no Rio, o Phelipe foi bronze por 10 centésimos. É igual o esporte olímpico.

No ano passado já houve muita reclamação do Brasil porque dois italianos e um ucraniano que já se destacavam entre atletas com menos deficiência foram rebaixados para a classe do Daniel Dias. Em poucos meses, ele perdeu todos os recordes que tinha. Vocês dois são duas das referências do esporte paraolímpico no Brasil. Você sente que os feitos de vocês são colocados em dúvida? 

Eu sou chorão e tal, mas escutar do teu presidente que o esporte tem o investimento que tem no Brasil por conta do que vocês fizeram… Você pega o sétimo lugar geral de uma Paraolimpíada, como de Londres, em que só duas pessoas ganharam nove medalhas de ouro. Aí paga três. Se tivesse lá os italianos, o Daniel não ganharia tudo que ganhou. Tivesse ganho duas. Seriam sete a menos. Então o Brasil não ficou em sétimo?

O sentimento de agora é igual ou pior do que aquele de 2005, quando você inicialmente foi considerado inelegível?

É diferente porque naquele momento ainda havia o sonho de buscar alguma coisa. Agora tem o sonho, mas já tenho uma história construída. Lá atrás eu era um atleta que sonhava em estar num grande evento, como via Gustavo Borges, Xuxa e outros, e vi naquilo uma grande oportunidade de vida. Recebi o parecer negativo, corremos atrás, batemos de frente, voltamos. Quando eu voltei, vi meu sonho ser realizado. Em 2008, eu nadei os 100m livre para 51s. O segundo foi Phelipe para 54s. Oito anos depois tinha quatro, cinco nadando para 51s. A entrada de um novo atleta, com uma deficiência que naquela época foi muito contestada, fez o esporte evoluir para uma qualidade técnica melhor.

Sentados aqui na mesa, eu não percebo sua deficiência. Ela é muito menos visível do que de outros atletas. E você chegou na natação paraolímpica ganhando tudo. Você sentiu preconceito?

Lá atrás os países podiam questionar a classificação de um atleta. Agora, é prerrogativa só do IPC. No passado eu via atletas, técnicos, dizendo que eu não era deficiente. Eu provava todos dias que eu não estava ali para burlar o sistema. Isso ficou confirmado quando meu maior adversário [o canadense Benoît Huot], meu maior amigo hoje, falou: 'Sei que você é deficiente, sei quanto é duro para você, e a gente tá junto nessa'. 

Você falou em estar em um "limbo". Muitas das críticas à Tifanny, jogadora de vôlei, terminam com um "por que não criam uma liga só para mulheres trans?". Você se sente assim, precisando de uma liga só para você?

No nosso país a gente está esquecendo um pouco o lado humano. Ninguém é diferente de ninguém, todo mundo é de carne e osso, todo mundo batalha, fica no vermelho. Todo mundo tem tudo. Mas ninguém pode privar o seu direito de escolha. É exatamente como me sinto. Difícil você falar se vai criar uma liga própria, se vai ter uma coisa só pra mim. Não é o que quero. Eu gostaria de ser acolhido pelo segmento pelo qual sempre levantei a bandeira. Por que lá atrás ele não tinha nenhum problema para competir e agora ele tem? E a Tifanny? Hoje ela  não é uma mulher? Qual a dificuldade de entender que ela tá ali para jogar uma liga? Qual a dificuldade de entender que uma pessoa com deficiência está ali para competir? As pessoas não estão lidando com números, estão lidando com vidas.

Faltou humanidade?

Eu vejo ainda, como eu falei, um sistema muito subjetivo quanto à promoção do que é o esporte, definir a classe, quem é quem, se você é 10, cinco, ou dois. E principalmente o que vem acontecendo mundo a fora. O esporte está se auto julgando e matando a si próprio.

Está se boicotando?

Não sei se é boicote, mas o esporte está se auto-flagelando quanto aquilo que ele quer mostrar. Se a gente quer mostrar um esporte coeso, que não é isso de coitadinho, se quer dar voz para esse processo de diversidade, como tira as referências que te dão os sonhos? Eu disse para a avaliadora que não guardo mágoas. Disse para ela: 'Não estou aqui para julgar ninguém, mas você não sabe o que eu estou sentindo'.

Você tem mágoa do presidente do IPC, o brasileiro Andrew Parsons, que era presidente do CPB até recentemente?

Como vou ter mágoa de um cara que lutou para eu voltar ao esporte? Como vou criticar quem fez tudo que fez pelo esporte paraolímpico brasileiro. A gente tem o investimento que tem por conta dessas pessoas. Eu vejo o que está acontecendo dentro do IPC. Eles lidam com diversas modalidades. Hoje a gente tem problemas na classificação da natação, mas é um problema que vem de anos. Se eu tiver que ser o carro-chefe para ver o esporte mudar, eu vou estar lá levantando essa bandeira. O que estiver à minha alçada, ao alcance dos meus dedos, a gente vai lutar por isso.

Sobre o autor

Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.

Está disponível para críticas, elogios e principalmente sugestões de pautas no demetrio.prado@gmail.com.

Sobre o blog

Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.