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Olhar Olímpico

Melhor maratonista do Brasil recomeça após tentativa de suicídio

Demétrio Vecchioli

10/04/2019 12h00

Daniel Chaves, em primeiro plano, treinando em Brasília

Eliud Kipchoge e Daniel Chaves já estiveram em pé de igualdade. Jovens promessas do atletismo, dividiram por dois anos o mesmo alojamento na Holanda. O brasileiro levava vantagem. Nunca perdeu uma partida na sinuca para o antigo rival – "ele era meu pato", lembra com carinho. O destino os afastou. Enquanto o queniano batia o recorde mundial da maratona, no começo do ano passado, Daniel tentava o suicídio, frustrado com o fim da carreira.

Oito anos depois, os dois vão se reencontrar no próximo dia 28 Estarão lado a lado, em pé de igualdade de novo, saindo da mesma linha de largada para a Maratona de Londres, em uma das provas mais aguardadas de todos os tempos. Há um ano, Daniel tentou tirar a própria vida e não conseguiu. No alto de uma ponte de Brasília, foi salvo por um anjo. Passou por uma clínica para tratar a depressão, recomeçou em um mosteiro e reencontrou no atletismo o combustível para viver. Aos 30 anos, ele é, enfim, um sopro de renovação na maratona brasileira.

Tudo graças a dois empresários de Brasília, que o puxaram pela mão quando tudo parecia perdido. Depois de oito anos treinando e morando na Holanda, Daniel viveu dias difíceis às vésperas da Rio-2016. Montou uma base de treinamento em Petrópolis (RJ) para receber seus amigos que estavam classificados para a Olimpíada. Acompanhou-os em toda a preparação e os levou até a Vila Olímpica. "Eles entraram, mas eu não pude passar da porta", conta, já sem a dor do ressentimento.

Daniel participa de prova na Europa contra quenianos

O fim

Em nenhuma outra prova ou modalidade ter um patrocinador que acredite no seu potencial é tão importante quanto na maratona. São anos de preparação, para correr duas provas por ano, no limite do corpo. Os resultados demoram a aparecer.

Para Daniel, demorou um pouco mais. O plano era que o índice da maratona saísse em Roterdã (Holanda), em 2015. Mas deu tudo errado. "Eu não conseguia pegar minha garrafinha de hidratação. Quando chegava nos postos, os quenianos e etíopes já haviam derrubado tudo. Peguei as de um holandês, amigo meu, mas tinha muita frutose. Meu corpo não reage bem à frutose." O ritmo de Daniel na primeira metade da prova indicava que a vaga na Rio-2016 viria com folga. Mas a ida ao banheiro estragou os planos e acabou por encerrar a prova.

No ano seguinte, era um dos coelhos contratados para puxar a Maratona de Düsseldorf, na Alemanha. Mas um outro coelho passou mal e o organizador da prova pediu várias vezes que Daniel, corresse "só mais cinco quilômetros", para fazer as vezes do colega. De cinco em cinco, o brasileiro aguentou 37km, mas ficou a mais cinco de completar. Tivesse feito preparação para a prova, talvez teria ido à Olimpíada.

Não foi e perdeu tudo. Ficou sem contrato com a Puma, então sua patrocinadora, e foi dispensado pelas Forças Armadas. Aos 28 anos, sem nunca ter completado uma maratona, ou disputado uma Olimpíada, encerrou a carreira. "Por não ter resultados expressivos e por não ter corrido a maratona naquele momento, perdi o patrocínio. Fiquei sem recursos para poder trabalhar em alto-rendimento. Não tive outra opção senão parar de correr", lembra. Fazer "bate-saco", como é conhecida a prática de disputar diversas provas de baixa premiação, não era uma ideia que o agradava.

O recomeço seria como burocrata de uma consultoria esportiva de Brasília, a convite do empresário Vinicius Alves Canhedo, do ramo de combustíveis, com quem tinha diversos amigos em comum e contato esparso pelas redes sociais. O "choque de realidade" o fez engordar oito quilos e o empurrou para o fundo do poço. 

"Deixar o atletismo não foi fácil. Passei por momentos de depressão, tive meses bem depressivos e precisei me tratar. Foi um período difícil, do qual eu não me envergonho. Tentei o suicídio em determinado momento da minha vida. Sou muito ciente do que passei e de como saí desse momento", conta. Foram necessários 45 dias em uma clínica de reabilitação, a base de medicamentos.

O recomeço

O atletismo foi sua salvação. Foi durante o tratamento que Daniel descobriu que há dez anos ele é portador de uma síndrome bipolar depressiva. A corrida o impedia de apresentar os sintomas, o que também não demandava tratamento. "Como eu corria, essa enfermidade ficava meio que encubada."

"Comecei o tratamento com medicamentos, mas o complemento foi a corrida. A psiquiatra disse que não ia me dar remédio de tarja preta porque eu já corrida. Ela dizia que eu precisava de uma manutenção, de um estímulo, de ver a vida com outros olhos. Para mim, o atletismo não é só hobby, é manutenção da saúde mental", conta.

Foram onze meses de tratamento, que Daniel só procurou por estímulo do empresário Vinicius. "Ele não só me ofereceu emprego, como abriu as portas da casa dele. Hoje eu moro com ele. Foi ele meu maior incentivador para voltar a treinar, e também para buscar tratamento", diz Daniel, que ainda faz tratamento paliativo com medicamentos e acompanhamento de psicóloga e psiquiatra.

A volta ao atletismo passou por um local no mínimo incomum para o esporte. Em julho do ano passado, Daniel seguiu até a cidade de Carmo da Cachoeira, no interior de Minas, para ficar um mês como interno de um mosteiro. Durante o período, não apenas treinou, como também conheceu o vegetarianismo, prática que ele segue desde então.

Era, enfim, o recomeço. Em dezembro, enfim ele completaria sua primeira maratona. Em Valência (Espanha), em uma prova fora das janelas da temporada, marcou 2h13min16, melhor resultado de um brasileiro desde o final de 2015 e também melhor estreia de um brasileiro desde 2011, quando Paulo Roberto de Paula, já aos 32 anos, foi um segundo mais rápido em Amsterdã – curiosamente, tendo Daniel como coelho.

Daniel não se empolgou com o resultado. Diz que estava preparado para um resultado muito melhor, mas que se juntou ao terceiro pelotão porque precisava terminar a prova. Tempo é o de menos. "Fiz a prova com muita cautela. o resultado não remete à realidade dos meus treinamentos. Eu não poderia errar", explica.

Daniel Chaves (reprodução/Instagram)

O futuro

Ele vê o Brasil, que já teve em Ronaldo da Costa um recordista mundial, "muito aquém" do resto do mundo na maratona. E está pronto para mudar essa história. "Hoje eu sou a nova cara do maratona no Brasil. Tenho 30 anos, estou entre a antiga geração e a nova geração. Sou o meio-termo. Tenho experiência, mas é hora de colher os frutos."

O COB também faz essa aposta. Em março, ele tinha programado um estágio no Quênia, onde passaria um mês. Por questões administrativas, a viagem precisou ser adiada. Ele deve ir para lá depois de correr em Londres, onde será o único brasileiro na elite da mais importante prova de maratona dos últimos anos – talvez da história.

Vai, enfim, colher os frutos de uma trajetória que começou há doze anos. Último brasileiro a disputar uma prova de 10.000m (a mais longa do atletismo) em Mundial Juvenil, em 2007, Daniel é até hoje o recordista nacional sub-23 na distância. Logo assumiu o status de grande promessa das provas de fundo do Brasil, sendo convidado para treinar e morar na Holanda, onde fica a base de muitos dos melhores fundistas do mundo, incluindo quenianos e etíopes.

Foi lá que Daniel conviveu com Kipchoge – que no ano passado correu a Maratona de Berlim em incríveis 2h01min39s – e com diversos outros dos melhores maratonistas da atualidade. "Eu sempre fui visto como esperança na maratona, sempre tive essa qualidade de fundista nato. Já com 15, 16 anos, corria provas longas. Então sempre tive essa atenção voltada para um dia correr maratona. Eles exploraram ao máximo o que eu poderia dar na pista, antes de fazer a migração".

Eles, no caso, é a NN Running Team, uma das equipes mais forte do mundo, a mesma de Kipchoge. Mas, na pista, Daniel nunca veio a ser um atleta fenomenal. Foi vice-campeão brasileiro três vezes, mas nunca disputou um Mundial, por exemplo. Enquanto não chegava a vez dele nas maratonas, foi coelho em Amsterdã três vezes. 

Agora, chegou a vez de reencontrar os amigos do passado, para brigar em brigar em igualdade de condições com eles. "Aquele garoto que eles viram crescer tá aí ainda, não se acabou, não se esvaiu durante o tempo. Tive alguns revezes, mas estou de volta."

 

 

 

Sobre o autor

Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.

Está disponível para críticas, elogios e principalmente sugestões de pautas no demetrio.prado@gmail.com.

Sobre o blog

Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.