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Entenda: suspensão da Lei Piva ao COB asfixia o esporte olímpico

Demétrio Vecchioli

09/04/2019 16h00

Há 20 anos, um bingo localizado em área nobre de São Paulo deixou de recolher impostos para a União. Por causa disso, na segunda-feira (9) a Caixa Econômica Federal suspendeu o repasse de recursos da Lei Piva ao Comitê Olímpico do Brasil (COB). A não ser que o COB consiga reverter a situação rapidamente, esse corte deve representar uma asfixia no esporte olímpico brasileiro a 108 dias do início dos Jogos Pan-Americanos de Lima.

Para você entender como se chegou a essa situação e o que significa essa suspensão, o Olhar Olímpico preparou uma explicação detalhada.

O que é a Lei Piva?

Há algum tempo, o Brasil já adotava o modelo internacional no qual os jogos ditos "de azar" financiam o esporte. Mas, até 2001, as entidades de administração do desporto (federações, confederações) eram autorizadas a terem bingos e loterias. Na prática, essas entidades terceirizavam o serviço e ficavam com parte dos lucros, de onde tiravam seus sustento. Voltaremos a falar sobre isso.

Em 2001, o Congresso aprovou e o então presidente FHC (PSDB) sancionou a lei proposta pelo então senador Pedro Piva (PSDB-SP) que garantiu um financiamento contínuo e certo ao esporte olímpico e paraolímpico. Pela Lei Piva, como ficou conhecida, 2% da arrecadação bruta das loterias federais em operação no país (a Caixa detinha exclusividade) deveriam ser destinadas ao COB (85% disso) e ao CPB (15%).

Esses montantes foram sendo alterados, até que, no ano passado, o presidente Michel Temer (MDB) promoveu um corte mal calculado, a partir da MP 841. O setor esportivo reagiu, Temer editou nova MP, que se tornou a Lei  13.756/2018, que na prática substituiu a Lei Piva.

Por essa lei, o COB tem direito a uma porcentagem específica do arrecadado em cada uma das loterias. Na maior delas, a Mega Sena, fica com 1,73% da arrecadação bruta. Na Loteria Federal, com 1,48%. Para 2019, a estimativa de arrecadação do COB é de R$ 250 milhões.

Em tese (a legislação não trata disso especificamente), mesmo com a suspensão dos repasses, o dinheiro não deixa de ser do COB. Quando a suspensão for encerrada, o comitê recebe a verba que foi represada.

Como é utilizado o dinheiro?

Atualmente, a legislação prevê o repasse de porcentagens do arrecadado nas loterias a cinco entidades esportivas: o COB, o Comitê Paraolímpico (CPB), o Comitê de Clubes (CBC) e as Confederações de Desporto Escolar (CBDE) e de Desporto Universitário (CBDU). Cada uma delas recebe diariamente a sua cota na distribuição da arrecadação das loterias, transferida diretamente da Caixa para uma conta específica.

E cabe a cada uma delas descentralizar o dinheiro. Ou seja: repassar a outras entidades que estão sob o seu guarda-chuva. No caso do COB, a 35 confederações olímpicas. A partir de uma série de critérios, o COB determina quanto estará à disposição de cada modalidade. Em 2019, por exemplo, o judô deveria receber R$ 6,7 milhões. O triatlo, R$ 2,4 milhões.

Para fazer jus ao dinheiro, cada confederação apresenta uma série de projetos, que precisam ser aprovados pelo COB. Por exemplo: o remo vai enviar uma seleção ao Mundial. Ao solicitar recursos, precisa listar todos os custos e apresentar três orçamentos para cada item. Com o projeto aprovado, o dinheiro é liberado e a confederação executa o programado. Depois, precisa prestar contas.

Por que a suspensão gera uma asfixia?

O recurso da Lei Piva é o que popularmente se chama de "dinheiro carimbado". Ele só pode ser utilizado dentro de regras estipuladas por uma série de portarias e decretos que limitam, por exemplo, os gastos com despesas administrativas. O que não é gasto não pode virar "poupança" para as confederações.

O COB, em tese, tem verba própria para continuar funcionando por alguns meses. O último balanço financeiro divulgado pelo comitê apontava que em 31 de dezembro de 2017 o COB tinha mais de R$ 80 milhões em cadernetas de poupança e fundos de renda fixa. O balanço de 2018 será votado em assembleia nesta sexta (12). Além disso, sem patrocinadores (apenas apoiadores, por permuta) o COB tem cerca de R$ 10 milhões ao ano repassados pelo COI.

A poupança é um fundo para emergências, o que parece ser este caso, mas seu uso é um caminho em volta. Se, por exemplo, o comitê optar por quitar a folha salarial com esse dinheiro, não poderá recuperar a poupança quando conseguir receber o dinheiro represado da Lei Piva. Essa verba precisa ser aplicada no esporte.

Para as confederações a situação é muito pior, porque a enorme maioria delas não têm poupança, nem têm patrocinadores privados, de forma que a Lei Agnelo/Piva é sua única fonte de receitas. Atividades esportivas não necessariamente serão suspensas, por enquanto, porque o COB pode pagar por elas. Mas muitas não têm como arcar com salários e despesas que são suas responsabilidades.

Por que o repasse foi suspenso?

No final de 2015, após um movimento liderado pela ONG Atletas pelo Brasil, o Congresso alterou a Lei Pelé para condicionar o repasse de verbas públicas ao esporte à adoção de uma série de medidas de governança por parte das entidades. Na prática, ficou estipulado que quem quiser dinheiro público tem que fazer as coisas direito.

Até o ano passado, porém, o Ministério do Esporte não havia regulamentado a aplicação dessas regras. Isso foi feito pela Portaria 115/2018, que criou um "procedimento de verificação" e um certificado, emitido pelo então ministério, com validade de um ano.

Para conseguir esse certificado, as entidades precisam apresentar uma série de documentos. Entre eles, certidões que atestem que elas não têm dívidas trabalhistas, com a União, com o FGTS. O COB não tem Certidão Negativa de Débito (CND).

O COB está devendo?

Diz a Receita Federal que sim. Depois de deixar de ser a entidade de administração da vela, em 2013, a CBVM desapareceu com uma dívida que deve estar em torno de R$ 200 milhões – eram R$ 191 milhões em abril de 2017. Sem ter como cobrar a CBVM, o Fisco foi atrás de quem considera "herdeiros" da dívida. Entre esses herdeiros está o COB, que foi incluído no polo passivo da dívida ainda em 2017.

O comitê, porém, diz que não tem nada a ver com isso. E tenta defender isso judicialmente. Executado duas vezes no ano passado, teve R$ 500 mil bloqueados em suas contas e teve que colocar um imóvel como garantia em outro processo.

A cobrança é justa?

Isso a Justiça é que dirá. Mas o que aconteceu foi o seguinte:

Lembra de como funcionava o financiamento do esporte pelos bingos? Pois na década de 1990 a Confederação Brasileira de Vela e Motor (CBVM) chancelou um bingo na região dos Jardins, em São Paulo. Era o Bingo Augusta. Que, de acordo com a Receita Federal, não pagou uma série de impostos – tênis de mesa e canoagem tiveram problemas semelhantes e até hoje estão enrorcadas. Como em tese o bingo era CBVM, a Receita foi cobrar a confederação.

Em 2006 sabia-se que a CBVM tinha uma grande dívida. Mas ninguém no esporte sabia qual o tamanho dela. Recém saído do cargo de secretário nacional de Esporte (cargo equivalente à época ao de ministro), Lars Grael articulou para assumir a confederação a partir de 2007. Ficou uma semana na cadeira. Quando descobriu o tamanho da dívida, solicitou uma intervenção do COB.

Preocupado com a ascensão política de Lars, cotado para disputar a presidência do COB, Carlos Arthur Nuzman não negou ajuda. Nomeou Carlos Luiz Martins, ex-presidente da Varig, como interventor da CBVM. À época, o COB prometeu que a intervenção duraria "até o pleno restabelecimento da ordem desportiva, administrativa e financeira da entidade, bem como após solucionadas eventuais demandas judiciais de modo a viabilizar as atividades da CBVM".

Não foi o que aconteceu. No final de 2012 foi criada uma nova confederação, a CBVela, presidida por Marco Antônio La Porta e apoiada por toda a comunidade da modalidade. Menos de um mês depois, o COB anunciou o fim da intervenção na CBVM. No início de 2013, o COB e a World Sailing (federação internacional) reconheceram a CBVela como nova entidade responsável pela vela no Brasil.

Quem ficou responsável pela CBVM? Ninguém sabe. Em tese, ela deixou de existir, mas ela não pode deixar de existir tendo dívidas a pagar. Alguém precisa ser responsável pelo prejuízo, e a Receita entende que têm responsabilidade o COB, a CBVela, as federações de vela de São Paulo e do Rio, e o antigo interventor.

Como resolver isso tudo?

Há diversos caminhos, mas três são principais.

O primeiro é obter a Certidão Negativa de Débito. Para isso, o COB precisa convencer ou a Receita ou a Justiça de que não é herdeiro da dívida. Há um julgamento em andamento no Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2), no Rio, de um recurso no qual o COB pede para ser retirado do polo passivo. O desembargador relator já votou, contra o pleito do COB. Uma desembargadora, em seguida, pediu vistas do processo, adiando a decisão. O COB só escapa com voto dos demais dois desembargadores da Turma.

O segundo é político. O COB defende que o dinheiro da Lei Piva não é um "recurso público", porque não passa pelos cofres da União – vai da agência lotérica para a Caixa, e desta para o COB. Não é esse entendimento que teve a Secretaria Especial de Esporte, que comunicou a Caixa sobre a ausência da certificação, nem a própria Caixa, que suspendeu os repasses. Mas essa interpretação pode ser mudada depois de muita conversa.

O terceiro é a via judicial. O COB estuda dois tipos de ações que poderiam garantir que a torneira seja novamente aberta. Uma opção é uma ação popular, que pode ser feita por qualquer cidadão, questionando os efeitos da suspensão para o esporte brasileiro. Outra, mais radical, seria denunciar o presidente da Caixa ao Ministério Público Federal por crime de responsabilidade, porque no entender do COB ele está praticando uma ilegalidade ao reter o dinheiro que pertence ao comitê.

Consequências políticas

Há uma certeza entre os cartolas do esporte olímpico brasileiro: o presidente Paulo Wanderley, que assumiu o COB no final de 2017, depois da prisão temporária de Carlos Arthur Nuzman, não tem responsabilidade sobre a dívida.

Mas questiona-se se ele não sub-avaliou as consequências da abertura dos armários onde estão antigos esqueletos do COB. Para proteger o comitê, que precisa de uma imagem positiva para buscar patrocinadores, Paulo Wanderley manteve a sujeira debaixo do tapete e não informou nem mesmo aos presidentes de confederação sobre o risco de não conseguir renovar a certificação do ministério.

Ele só tratou do tema pela primeira vez depois que o Olhar Olímpico revelou esse risco, há dez dias. E, desde então, apostou em ações políticas, acreditando que o governo não deixaria o esporte olímpico na mão. Fez uma avaliação errada.

O principal interlocutor do COB em Brasília é o general Marco Aurélio Vieira, secretário de Esporte, que tem a cadeira, mas não tem a caneta. As decisões são tomadas pelo seu superior, o ministro da Cidadania Osmar Terra (MDB-RS). Ao mesmo tempo, após 100 dias de governo, nenhum secretário de Alto-Rendimento tomou posse. O terceiro e aparentemente definitivo nome é o de João Manuel (MDB-MA), filho de um ex-senador, pastor evangélico, que até agora não foi nomeado. E com o qual o COB não tem contato.

Sobre o autor

Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.

Está disponível para críticas, elogios e principalmente sugestões de pautas no demetrio.prado@gmail.com.

Sobre o blog

Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.