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Olhar Olímpico

Tiro esportivo: mocinho ou vilão no debate sobre porte de armas?

Demétrio Vecchioli

08/01/2019 11h00

Julio Almeida do tiro esportivo (Jeferson Romeu/CBTE)

A eleição de Jair Bolsonaro (PSL) gerou reações antagônicas entre atletas das mais diversas modalidades. No tiro esportivo, porém, descontentes, se existirem, são rara exceção. É que o novo presidente da República, para quem diversos atletas da seleção brasileira fizeram campanha, chegou ao cargo prometendo afrouxar as medidas anti-armamento da população civil. A esperança é que as medidas abranjam demandas antigas dos praticantes da modalidade.

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"Desde 2005 nossa burocracia está absurda para conseguir trabalhar o tiro esportivo. É uma burocracia que inibe que muitas pessoas comecem a praticar o esporte. A expectativa com o novo governo é que alguma coisa seja modificada e o atleta tenha um pouco mais de facilidade para aquisição de equipamentos, para que os clubes possam colocar munição para o treinamento", diz Julio Almeida, coronel reformado da Força Aérea Brasileira e eleito o melhor do país no tiro esportivo em 2018.

Os atletas que representam o Brasil em competições de tiro há anos reclamam que o Estatuto do Desarmamento, de 2003, que restringiu o comércio de armas de fogo e munições, dificultou a posse e principalmente o porte desses equipamentos. Em 2017, porém, uma Portaria do Exército passou a permitir que os atiradores se desloquem de casa até o estande de tiro municiados.

Até então, arma e munição precisavam ser transportadas em compartimentos separados dentro do veículo. Depois da portaria, o atirador esportivo, seja ele o medalhista olímpico Felipe Wu, seja um "atleta" que treina oito vezes por ano (mínimo exigido pelo Exército), pode sair de casa pela manhã com a arma carregada, desde que à noite vá (ou diga que vá) ao estande de tiro – o que é criticado por entidades ligadas ao desarmamento. 

"Do dia para a noite, em uma canetada, 90 mil pessoas receberam autorização para andarem armadas", critica Ivan Marques, diretor-executivo do Instituto Sou da Paz.  "Quando você flexibiliza ainda mais esses limites, dá isenções tributárias, facilita importação, você beneficia o esportista sério, mas também está colocando mais armas e munições em circulação na sociedade brasileira. A casa do atleta, o local de treino dele, vão ter mais armas para serem visadas pela criminalidade."

Cresce número de atiradores

Os atiradores são um grupo que cresce no Brasil a números exponenciais – ao menos para o Exército, que é quem controla a emissão de autorizações de posse para o chamados CAC's (Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador). Em 2014, cerca de cinco mil pessoas conseguiram esse tipo de licença. Três anos depois, em 2017, o número de autorizações por ano chegou a cerca de 30 mil.

Presidente em exercício da Confederação Brasileira de Tiro Esportivo, que abraça a maior parte das modalidades do tiro, incluindo as disputadas nos Jogos Olímpicos, Jodson Junior diz que desde a Rio-2016 o número de filiados à entidade cresceu entre 15 e 18%. O crescimento, porém, é bem menor que o número de autorizações de posse de armas solicitada por possíveis atletas.

"Essa divulgação de venda de armas, essa coisa que vai acontecer, pode ter influenciado alguma coisa, mas não tanto para o tiro esportivo. Pode ter sido para outras modalidades", avalia o baiano, que opina que esses atletas possam estar sob o guarda-chuva de outras entidades de tiro. Se cada vez mais gente está se apresentando ao Exército como atirador esportivo, não é pelo sonho de defender o Brasil em uma Olimpíada.

"Se apresentar como atirador desportivo é muitas vezes um subterfúgio para conseguir uma licença em tese mais facilitada", critica Marques. "Em tese porque os requisitos exigidos pela Polícia Federal (para o cidadão comum) e pelo Exército (para os CAC's) são os mesmos, mas o Exército tem tido dificuldade em fiscalizar. A tramitação burocrática tem sido oferecida por despachantes como meio menos controlado para se adquirir arma de fogo. Temos muitos clubes de tiro de fachada, despachante prometendo com outdoor: 'Tire sua licença'. Ninguém está interessado em vender possibilidade de ser atirador esportivo, para competir, usar como atividade lúdico esportiva, só para poder andar armado", completa o diretor do Instituto Sou da Paz.

Custo alto é queixa no tiro esportivo

Para o esporte de alto-rendimento, as melhores armas são importadas e, portanto, acessíveis a poucos atletas. Assim, uma das esperanças que os atletas depositam em Bolsonaro é que o presidente reduza a carga tributária que incide sobre a importação desses equipamentos e munições. A medida valeria para os atletas filiados à CBTE e também para os demais cidadãos que se apresentam ao Exército como atiradores, mas que não participam de competições. 

"A maior dificuldade hoje é adquirir munição para treinar, munição de boa qualidade, que é importada. E também o equipamento. Para você começar, existem algumas disciplinas que você pode atirar com armas compradas nacionais. Mas para você entrar em uma modalidade olímpica, você vai ter que importar material, trazer de fora. É um fator impeditivo. Hoje se eu fizer uma importação de arma, eu vou gastar 110% a mais do que o valor da arma, mais o frete. A gente tem expectativa que isso melhore a partir de 2019″, diz Julio.

Julio Almeida lembra que, depois dos Jogos Militares de 2011, por iniciativa do general Fernando Azevedo e Silva, um workshop na Escola Superior de Guerra discutiu o futuro do esporte militar no Brasil. E a conclusão que se chegou ali, perante ao hoje ministro da Defesa, era de que o caminho para o tiro esportivo era incentivar as disciplinas de ar comprimido.

"O caminho que a gente viu era começar a colocar nos colégios militares estandes de ar comprimido. Você tem que expandir estandes de ar comprimido pelo país. A arma não é tão diferente o preço, mas o chumbinho nós já temos de boa qualidade no Brasil. Se você expande o ar comprimido, que já é prova olímpica, você vai ter muito mais gente praticando tiro e o caminho fica mais fácil para expandir. Depois que você começa a praticar, o cara se anima em fazer um investimento maior e comprar as armas de bala", avalia Julio.

Apesar do investimento das Forças Armadas no programa de alto-rendimento, que custou cerca de R$ 20 milhões no ano passado, o apoio ao tiro esportivo ainda é incipiente. "Falta estande", responde o atirador, quando questionado pela reportagem se as Forças Armadas têm incentivado o desenvolvimento na modalidade. "O apoio que é dado para chegar no nível olímpico é pequeno. Hoje a gente não tem estrutura que permita chegar nesse nível. Os atletas que chegam, eles chegam com muito apoio pessoal."

Segundo ele, a estrutura para o tiro esportivo no país ainda é precária, com duas exceções. "Hoje na Academia Militar do Exército você tem uma estrutura razoável, a melhor, próxima do que tem no Centro Militar de Tiro Esportivo (em Deodoro). Ali sim tem estrutura bacana. O ideal é que cada federação tivesse seu próprio estande. Hoje não tem treinadores. Eu quero aprender, onde eu vou? Conheço poucas pessoas no Brasil que treinam. Quando você tiver uma estrutura minima dessa você vai começar a formar jovens."

Ao anunciar o general da reserva Marco Aurélio Vieira como secretário especial de Esporte, o ministro da Cidadania, Osmar Terra (MDB-RS), explicou que aquele era um reconhecimento pelas medalhas conquistadas por atletas militares na Olimpíada do Rio.

Coronel da reserva na FAB, Júlio Almeida agradece o apoio que recebeu dos militares ao longo da carreira, desde a formação, incluindo um sem número de munições e empréstimo de equipamentos. Mas lembra que essa é só uma parte do processo. "Participei de muitas competições com apoio das Forças Armadas. Mas também muita competição com a apoio da confederação, do Comitê Olímpico do Brasil e do Ministério do Esporte", reconhece.

Entidade critica regras especiais a esportistas

O Instituto Sou da Paz condena que atiradores esportivos possam ter privilégios no Brasil. "O Brasil é o país onde mais se mata com arma de fogo. Entendo as dificuldades que a legislação impôs ao atleta de tiro esportivo. A situação social do país impede que exerça como ele queria. Ele vai ter que submeter", disse Marques.

O porta-voz da entidade cita o exemplo do Reino Unido, que criou regras mais rígidas para posse e porte de arma em 1997 – um ano depois de o terrorista Thomas Hamilton atirar contra inocentes e matar 16 crianças em um massacre em Dunblane (Escócia). O tenista Andy Murray, então um garoto com 8 anos, e seu irmão estavam na escola onde ocorreu o ataque e escaparam por pouco.

Desde então é proibida a posse de pistolas em todo o Reino Unido. Isso vale inclusive para atiradores esportivos. Não que a Terra da Rainha não tenha atletas de pistola. Os atiradores esportivos britânicos, porém, precisam se adaptar à legislação do país. Têm apoio para competições, mas devem treinar em qualquer outro lugar que não a Grã-Bretanha – apenas os atletas de carabina podem treinar no território britânico.

Vale lembrar que o Reino Unido já não tinha tradição nas provas de pistola, tanto que não classificou nenhum atleta a Barcelona-1992 e Atlanta-1996. No Rio-2016, também não teve representantes nas cinco disputas de pistola.

"É uma questão de sensibilidade social. Queria que o Brasil fosse um pais mais justo, menos violento, para a gente tratar com naturalidade o atleta do tiro e seu equipamento, como a gente trata o atleta da esgrima, do tiro com arco. Mas infelizmente não é assim", lamenta o especialista. "O atleta de tiro esportivo precisa entender que o objeto de prática do esporte dele não é qualquer objeto. O objeto necessário para a pratica do esporte é o mesmo objeto utilizado pelo criminoso", completou.

 

Sobre o autor

Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.

Está disponível para críticas, elogios e principalmente sugestões de pautas no demetrio.prado@gmail.com.

Sobre o blog

Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.