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Olhar Olímpico

CBSurfe usou dinheiro público para alugar imóvel da esposa do presidente

Demétrio Vecchioli

19/12/2018 15h00

Guilherme Pollastri (esq.) e Adalvo Argolo (dir.), durante visita ao Instituto Gabriel Medina

Ao mesmo tempo em que o surfe brasileiro vive seu auge esportivo, com o bicampeonato mundial de Gabriel Medina, politicamente a modalidade passa por momento caótico. Na semana passada, a Justiça Federal acatou pedido de liminar do vice Guilherme Pollastri e determinou o afastamento do presidente da Confederação Brasileira de Surfe (CBSurfe), Adalvo Argolo. Comitê Olímpico do Brasil (COB) e Ministério do Esporte também já foram envolvidos em uma disputa que ainda promete ter muitas consequências para a modalidade.

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Criada em 1998, a confederação sempre teve gestão amadora. Desde 2012 ela é regularmente beneficiada com recursos do governo da Bahia – foram R$ 2,3 milhões desde então – e, com a inclusão do surfe no programa olímpico, começou este ano a receber recursos da Lei Agnelo/Piva, descentralizados pelo COB. Assim, passou a ficar sujeita a um amplo arcabouço de leis. A falta de preparação técnica para se adequar a essas exigências passou a ser usada como justificativa para responder denúncias de possíveis irregularidades.

Um mês antes de passar a receber recursos do COB, a CBSurfe mudou de endereço, informalmente. Ainda que continue informando ao COB que tem sua sede na avenida Santa Luiza, 1.000, no bairro Horto Florestal, em Salvador, passou a apresentar recibo de aluguel de uma sala na rua Soldado Luiz Gonzaga das Virgens, 93, no bairro Caminho das Árvores, também na capital baiana.

A sala pertence à defensora pública Gisele Aguiar Ribeiro Pereira, que é mulher de Argolo. É ela quem assina o recibo de R$ 2,5 mil pelo aluguel mensal de maio. Já o marido assina o carimbo que atesta, pela CBSurfe ao COB, que aquele serviço foi de fato entregue. Outros dois recibos assim foram apresentados em abril e junho.

Questionado pelo blog na semana passada, Argolo gaguejou ao negar a existência do recibo acima: "Não. Esse, esse, esse, esse coiso (sic) é nosso e não tem nada de Agnelo Piva aí. Esse imóvel é nosso e a gente está dando ele para a confederação, que não tem verba para pagar, no momento", comentou, por mensagem de áudio enviada pelo WhatsApp. O Olhar Olímpico reforçou a pergunta: a CBSurfe apresentou recibo de aluguel deste imóvel ao COB? "Não, porque configura como coisa familiar e aí a gente está só funcionando lá temporariamente", respondeu.

Na segunda (17), o blog fez de novo a mesma pergunta, desta vez mostrando o recibo a Argolo. E aí a versão mudou. O cartola confirmou que apresentou o recibo ao COB, explicando por que deu outra informação antes. "Se eu devolvi, eu não preciso dizer que apresentei. Entendeu, cara? Por não ter esse conhecimento a gente apresentou recibo. Ah, não pode pagar? Beleza, devolvemos o dinheiro. Não fizemos da forma certa, corrigimos o erro".

Segundo ele, o uso de recurso público para alugar um imóvel de sua mulher foi por "inexperiência. "Assim que o COB soube que era gente da família, a gente devolveu o dinheiro. Estamos devolvendo assim que o COB glosa. Tem inclusive outros itens devolvidos, que a gente não fez certo." O COB diz que comunicou a irregularidade no fim de novembro, quando analisou a prestação de contas relativa a abril. Ainda segundo o COB, a CBSurfe foi notificada de que deveria devolver com recursos próprios o valor aplicado irregularmente.

Prestar contas de recursos públicos não deveria ser uma novidade para Argolo. Entre 2009 e 2012, a Federação Baiana de Surfe, então comandada por ele, firmou sete convênios com a Sudesb (Superintendência dos Desportos da Bahia). Em 2012, a CBSurfe foi quem passou a receber os recursos para realizar os mesmos eventos que antes eram da federação. Em quatro anos, até 2016, foram 15 convênios, de valores que variam de R$ 150 mil a R$ 200 mil, num total de R$ 2,3 milhões. Por estes acordos, Argolo teve de prestar contas ao poder público.

Afastamento

Em resumo, Pollastri, que é do Rio, acusa Argolo de fazer uma gestão sem transparência e sem prestar contas, alijando-o do processo decisório por cobrar explicações. O vice-presidente buscou diversas vias para comprovar sua tese e derrubar o presidente, tendo sucesso na Justiça Federal. Enquanto isso, Argolo diz que foi eleito democraticamente e que cabe aos associados cobrarem explicações pelas vias previstas em estatuto e na legislação esportiva.

Em nota, Adalvo reclama que a CBSurfe não foi intimada de qualquer decisão judicial, que de fato foi tomada à sua revelia. É que o oficial de Justiça da 2ª Vara Cível do Distrito Federal bateu à porta da sede no Horto Florestal, informada pela CBSurfe ao Ministério do Esporte e ao COB. Segundo o porteiro, a confederação não está lá há mais de dois anos.

Adalvo diz que a confederação está no bairro Caminho das Árvores desde fevereiro. E que a informação é pública: consta em ata registrada em cartório de Salvador – em outubro. A mudança foi aprovada na última assembleia geral da CBSurfe, realizada em 9 de junho. Depois, portanto, do recibo apresentado ao COB, datado de maio – na época, o cartola não tinha autorização para mover a sede da confederação para um imóvel que pertence à sua mulher.

Na ação que pediu o afastamento de Adalvo, Pollastri alega que a CBSurfe não prestou contas dos recursos recebidos do COB e que, por isso, poderia ter seus recursos bloqueados. Com funcionamento pouco transparente, pela reclamação do vice, a CBSurfe não teve sua prestação de contas anual apreciada pelo conselho fiscal e está com a certificação suspensa pelo Ministério do Esporte – o que é verdade, uma vez que a confederação não se adequou às exigências da Lei Pelé, como abrir seu colégio eleitoral aos atletas.

O COB, porém, não confirma as informações que lhes dizem respeito. Pelo contrário. Em 9 de novembro, em ofício a Argolo, o presidente Paulo Wanderley informou que a CBSurfe "não deixou de prestar contas de nenhuma verba junto ao COB" e que não teve nenhuma prestação de contas rejeitada pelo COB.

O pedido de afastamento, aliás, já havia sido rejeitado pelo Conselho de Ética do próprio COB, que arquivou a denúncia. "Não satisfeito, o Pollastri fez as mesmas falsas acusações perante o Ministério do Esporte, que já recebeu defesa e documentos da ausência de qualquer irregularidade. Por não ter tido sucesso nas duas últimas tentativas, Pollastri aparentemente repetiu pela terceira vez as mesmas acusações agora perante o Poder Judiciário de Brasília", atacou Adalvo, em nota.

Também em comunicado, as federações estaduais criticaram o afastamento decidido pela Justiça. "Todos nós somos e sempre seremos favoráveis a que qualquer denúncia de eventuais irregularidades ou má utilização de recursos públicos por parte da CBSurfe seja rigorosamente apurada e no caso de comprovação de qualquer ilegalidade que os responsáveis sejam rigorosamente punidos. Porém, o afastamento por liminar sem direito de defesa prévia de um presidente democraticamente eleito que afirma ter documentação que prova sem sombras de dúvidas a lisura e regularidade das prestações de contas da entidade cria uma insegurança que é extremamente prejudicial ao andamento e a imagem do nosso esporte", escreveram.

Na terça (18), Pollastri conseguiu mais uma liminar na Justiça, desta vez para que a sede da confederação mude provisoriamente para o Rio de Janeiro, onde ele tem escritório. Na mesma liminar, o juiz determinou que Adalvo tinha 48 horas para entregar todos os documentos da confederação ao agora presidente interino.

O que faz a CBSurfe?

Como acontece com tantas confederações, a CBSurfe mantém sua sede na cidade de origem do seu presidente, Adalvo Argolo. Nos últimos anos, antes de o surfe se tornar esporte olímpico, costurou-se um acordo tácito entre a confederação e a Associação dos Surfistas Profissionais (Abrasp), que vem sendo a responsável por realizar competições profissionais no Brasil. À confederação cabia apenas organizar um circuito amador, que ocorria praticamente apenas nos estados do Nordeste. Em 2017, por exemplo, não ocorreu.

Sem receber verbas públicas, a confederação também não precisava se adequar à Lei Pelé. A área de "transparência" do site dela não tem nenhum documento, enquanto que a de "notas oficias" não é atualizada desde 2011. Os diretores não são nomeados, assim como não há sequer um telefone à disposição. Incluída como membro da assembleia geral do COB este ano e financiada pelo comitê a partir do final de março, passou a ter os mesmos direitos e obrigações de todas as outras confederações.

Adalvo aproveitou acionar o direito de ser remunerado pela Lei Piva. De março a junho, recebeu R$ 20,4 mil. Depois disso, não fica claro na planilha do COB se ele continuou recebendo o pagamento, uma vez que, por nova regulamentação, os salários dos cartolas passaram a contar como "manutenção" e não mais como "fomento". No caso da CBSurfe, o custo de manutenção saltou de R$ 11 mil em junho para R$ 33 mil em setembro.

Com o financiamento do COB, a CBSurfe também contratou um coordenador técnico, Rosaldo Carneiro, e passou a receber R$ 90 mil para realizar cada uma das quatro etapas do Circuito Brasileiro Amador, destinado às categorias de base.

O racha na confederação veio quando, em julho, o COB liberou R$ 278 mil para que a CBSurfe levasse uma equipe para o ISA Surfing Games, em setembro. A competição é uma espécie de Mundial amador e ganhou relevância depois que a a ISA (federação internacional) foi reconhecida pelo COI como responsável por organizar as provas de surfe da Olimpíada.

Naquele momento, a confederação estava inadimplente com o COB (o que é algo relativamente comum no dia a dia das confederações) e momentaneamente impedida de receber recursos. O comitê então se ofereceu para executar a veba – ou seja, usar sua própria equipe para comprar passagens, reservar hoteis, sem precisar repassar o dinheiro para que a confederação o fizesse. A CBSurfe recusou.

Preferiu tentar regularizar sua situação, para poder receber o dinheiro e aplicá-lo. A estratégia não deu certo, porque isso só ocorreu em 3 de setembro, a 12 dias do evento. Sem expertise de gestão de recursos públicos, a confederação não conseguiu comprar as passagens. O COB ofereceu ajuda, novamente recusada. Já na véspera da competição, a CBSurfe finalmente conseguiu cotar as passagens para o Japão, mas só encontrou bilhetes com escala nos Estados Unidos. E os surfistas não tinham visto para isso – relembre aqui a confusão.

A impossibilidade de levar surfistas para uma competição importante foi o estopim do racha entre o grupo de Pollastri, que é mais próximo aos surfistas profissionais, e as federações próximas a Argolo, a maior parte delas com atuação quase nula no alto-rendimento.

Acusação

Não é só Pollastri que ataca Argolo. O presidente da confederação usou boa parte da nota oficial emitida na semana passada para atacar o vice. "Pollastri não goza do apoio de atletas nem tampouco de nenhuma das federações estaduais filiadas da CBSurf. Muito pelo contrário: vem sendo comentado no meio como sendo alguém que está prejudicando os atletas e o esporte em busca de seu projeto pessoal de poder", criticou.

Adalvo ainda lembrou que o rival, conselheiro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), aparece entre os indiciados de uma CPI originada da Operação Zelotes, que investigou uma suposta manipulação em julgamentos do Carf para favorecer empresas investigadas por crimes contra a Receita Federal. O esquema, investigado na Operação Zelotes, pode ter resultado em prejuízo de R$ 19 bilhões à Receita.

A denúncia foi feita em 2015, mas até agora, segundo Pollastri, ele foi citado para defesa preliminar. Enquanto isso não acontece e a defesa não é apreciada, ele não pode ser descrito como réu. Alega ele ainda que o MPF sequer o denunciou criminalmente e que a representação foi feita pela Advogacia-Geral da União (AGU).

Sobre o autor

Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.

Está disponível para críticas, elogios e principalmente sugestões de pautas no demetrio.prado@gmail.com.

Sobre o blog

Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.