Isaquias pagou dívida e fez planos para o Mundial antes de perder seu 'pai'
Isaquias Queiroz remou por duas horas no sábado. Havia sido cobrado pelo técnico Jesus Morlán, a quem estava "devendo" esse tempo de treinamento. Dívida paga, trocou mensagens com o treinador pelo Whatsapp. Aproveitaram para falar de estratégias para a próxima temporada, de planos para o Mundial de Canoagem Velocidade do ano que vem, em Szeged (Hungria). A conversa, porém, não acabou.
"A gente estava conversando normal no sábado, tava tudo bem, e aí no domingo veio a notícia de que ele havia falecido no hotel. A esposa avisou que não estava conseguindo falar com ele, o Lauro (assistente) foi no hotel e encontrou ele já falecido", contou Isaquias, em conversa por telefone com o Olhar Olímpico. Os dois moraram juntos por quase quatro anos em Lagoa Santa (MG), onde o COB e a Confederação de Canoagem mantém uma casa para a seleção de canoa que treina lá. Mas, nos últimos meses, Morlán havia se mudado para um hotel.
É que o tumor no cérebro, detectado no fim de 2016, já estava atrapalhando a locomoção do treinador espanhol, que já não conseguia mais subir escadas com facilidade. Apesar disso, e do diagnóstico pouco otimista de médicos que lhe deram menos meses de vida do que ele de fato viveu, o treinador decidiu continuar em Lagoa Santa.
"Se perguntar quem foi Jesus, a gente até hoje não sabe. O que ele fez nenhum outro ser humano faria. Largar a família para poder ficar com outras pessoas, para ajudar no treinamento de outras pessoas. Claro que eu não estou feliz, mas quando eu lembro do sorriso dele eu fico feliz", comentou Isaquias, emocionado.
Os dois começaram a trabalhar juntos em 2013, quando o COB decidiu apostar no então jovem baiano de 19 anos, contratando para treiná-lo um técnico consagrado mundialmente, que havia ajudado seu compatriota David Cal a se tornar o maior medalhista da história da Espanha, com um ouro e quatro pratas. Inicialmente num CT improvisado em São Paulo e, depois, em Lagoa Santa, Morlán mudou a história da canoagem no Brasil.
"Ele deu a vida dele pelo esporte, pela gente, se dedicou ao máximo pleo trabalho dele. Me ensinou tudo. Acho que foi um pai, porque ele me ensinou várias coisas, me ensinou disciplina, o que é respeitar outra pessoa. Ele ensinou a amar o próximo. As medalhas, os resultados, isso não foi nada. O maior presente foi o carinho dele e o amor dele, porque ele amava muito a gente. Era um cara excepcional, sempre deixando a gente em primeiro plano", continua a estrela da canoagem brasileira.
Dono de três medalhas olímpicas, Isaquias acha que será difícil treinar nos próximos dias, uma vez que a lembrança de Morlán estará em todos os lugares. Sabe que "ainda tem muito para dar", que nenhum outro treinador será como Jesus, e promete que não vai deixar de se dedicar "porque ele deu a vida dele pela gente".
Exemplo
Jesus não foi só um marco para a canoagem brasileira. O trabalho dele, que fez de Isaquias o primeiro multimedalhista da história do esporte olímpico brasileiro (até então o recorde era duas medalhas para um mesmo atleta numa única edição), o coloca entre os grandes treinadores de nossa história.
"A contribuição transcendeu realmente a canoagem", avalia Jorge Bichara, diretor de Esportes do COB. "Vejo pela quantidade de treinadores que fizeram contato de ontem (domingo) para hoje (segunda) lamentando o que ocorreu, treinadores de diversos outros esportes. Nas nossas reuniões de treinadores, ele sempre fazia as pessoas refletirem. Ele sempre foi muito estratégico, sempre muito positivo nas afirmações, sempre muito competitivo nas suas propostas", continua.
No entender de Bichara, Morlán era "muito prático". "Ele só saia da base de treinamento quando sentia que os atletas estavam num excelente momento pra competir. Ele saia pouco, competia pouco, desde quando treinava do David Cal. Dizia que se não estiver fazendo no treino, não é na competição que vai fazer."
De fato, o espanhol apresentou um conceito incomum no esporte brasileiro. Isaquias e o restante da equipe de canoagem competiram poucas vezes nos últimos anos, mas sempre no melhor da forma física e mental. Só saiam de Lagoa Santa para dar o melhor.
"Ele tinha a medida certa entre você trabalhar confiança no atleta e não subestimar o adversário. Era para motivar, criar no atleta a confiança de que era capaz de enfrentar qualquer adversário. Eram colocações muito firmes. Ele brigava para tirar o máximo dos atletas no dia a dia", lembra Bichara.
Os dois deveriam viajar no próximo domingo a Houston, nos Estados Unidos, onde Morlán iria buscar um novo tratamento contra o câncer. Apesar da bibliografia médica apontar uma baixa expectativa de vida depois da detecção do tumor, o espanhol viveu dois anos e queria mais.
"Ele amava o trabalho. Isso que deixava ele vivo. Óbvio que ele amava a filha, a esposa, mas dentro da forma dele de pensar ele conseguiu encontrar um equilíbrio. Ele gostava disso daqui. A gente vai manter a estrutura da forma como ele desenhou", promete Bichara. O principal assistente de Morlán, Lauro de Souza Júnior, vai assumir a equipe.
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