Quando a 'denúncia' contra um ídolo vira a história de um bom exemplo
Esse texto é um relato pessoal. Quando um jornalista tem um perfil crítico, é comum que surjam denúncias daqui ou dali. Dicas, indícios, ou mesmo o próprio "faro jornalístico". Em 99% dos casos, ainda mais na gestão do esporte brasileiro, vale a máxima de "quanto mais mexe, mais fede". Desde que entrou no ar, o Olhar Olímpico já mostrou dezenas, talvez centenas dessas histórias. Chegou a hora de falar daquele 1% "anjo".
Uma fonte deu a dica: técnico mais vitorioso do judô brasileiro, o Kiko (Antônio Carlos Pereira) está locado no gabinete do deputado federal João Derly (Rede-RS), que foi seu pupilo. Ganha um salário expressivo (mais de R$ 15 mil) e, mesmo assim, continua empregado na Sogipa, clube gaúcho. Tanto que é o treinador de 14 atletas da seleção brasileira. Tinha tudo para ser uma grande denúncia.
Os "99% vagabundos" – só para continuar parafraseando a música famosa – nos fazem inverter a lógica. No esporte brasileiro, a presunção é de culpa. Como pode um treinador de altíssimo rendimento ter um cargo no gabinete de um deputado? A resposta veio com apuração: basta o treinador ir ao clube somente fora do expediente como assessor e descontar o ponto toda vez que precisa se ausentar.
Kiko assumiu o cargo de chefe de gabinete de Derly em 1º de fevereiro de 2015. No mesmo dia, assinou um novo contrato com a Sogipa, para ganhar menos. Continuaria como técnico-chefe de uma equipe que hoje tem 14 judocas na seleção brasileira, mas trabalharia menos. As 39 horas semanais foram reduzidas a 18, e o salário, o mais alto da Sogipa, despencou para menos da metade.
Responsável por formar atletas como o próprio João Derly e Mayra Aguiar, ambos bicampeões mundiais, entre tantos outros, Kiko passou a se ausentar do comando diário da equipe, agora nas mãos dos auxiliares. Seus atletas o veem uma vez no por dia, em um treino das 20h às 22h, depois do expediente no gabinete de Derly em Porto Alegre, onde ele trabalha 40 horas semanais. Os judocas da equipe confirmam. Assim, ele não trabalha mais do que 60 horas por semana, como manda a lei.
Como não é funcionário da CBJ, Kiko raramente é convocado para treinar a seleção, ainda que seja o treinador com mais atletas na equipe. Recentemente, porém, foi chamado para liderar o Brasil em dois torneios, na Geórgia e na Turquia. De acordo com Ney Wilson, da CBJ, pediu um tempo para responder. Antes, precisaria tentar tirar férias. Conseguiu e voltará a viajar internacionalmente pela seleção após sete anos.
Em 2016, as férias coincidiram exatamente com o período dos Jogos Olímpicos do Rio. Derly, como presidente da Comissão do Esporte da Câmara dos Deputados, ganhou uma credencial, mas seu assessor não solicitou o mesmo direito. Pagou do bolso os ingressos para ver seus pupilos lutarem – Mayra Aguiar foi a única a subir ao pódio, com um bronze.
Por ser o chefe do gabinete, Kiko é quem controla verbas, salários e descontos. Inclusive o seu. Em dezembro, durante o recesso parlamentar, se ausentou do escritório para participar de um camping de treinamento da seleção em Pindamonhangaba. Descontou os três dias do próprio holerite, deixando de ganhar quase R$ 1 mil.
Aí o leitor vai argumentar: "Tá bom, ele não fez mais do que a obrigação". De fato, não fez. Mas em meio a tanta gente que faz tanta coisa errada, um bom exemplo é sempre bem vido, não?
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