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Olhar Olímpico

COB usa brecha para pagar R$ 37 mil a treinadores e estourar teto

Demétrio Vecchioli

21/02/2018 04h00

Admitindo que o esporte de alto rendimento tem um padrão salarial específico, o Tribunal de Contas da União (TCU) decidiu permitir que o Comitê Olímpico do Brasil (COB) pague, a técnicos, valores acima do teto do funcionalismo público – 70% da remuneração de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), hoje em R$ 33,7 mil. Mas determinou que as remunerações a partir dos recursos arrecadados pela Lei Agnelo/Piva fossem regidas por uma normativa que tivesse como base de comparação o que paga o mercado esportivo, seguindo um padrão. O COB fez isso, porém abriu exceções. Carlos Alberto Cavalheiro, do atletismo, e Torben Grael, da vela, não têm, como treinadores, currículos equivalentes aos mais de R$ 37 mil que recebem em 14 salários, sendo um extra em janeiro. Além deles, o espanhol Jesus Morlán, da canoagem velocidade, também ganha na casa de R$ 37 mil.

O acórdão do TCU que admitiu as peculiaridades do esporte de alto rendimento foi publicado em 2016, mas desde 2013 o COB tem uma portaria sobre "remuneração de profissionais atuantes no esporte de alto rendimento", que deve ser seguida não só pelo comitê, mas também pelas confederações para as quais o COB descentraliza os recursos da Lei Piva.

"Por vezes, não há como remunerar um profissional de currículo renomado internacionalmente com os valores autorizados pelas regras legais. Foge ao senso comum que se prejudique a preparação de uma seleção brasileira, envolvida em campeonatos mundiais, em virtude de não se poder custear salários compatíveis com os valores de mercado para o treinador dessa equipe", escreveu o ministro relator Vital do Rêgo, julgando "razoável" recomendar que o Ministério do Esporte, o COB e o Comitê Paraolímpico (CPB) criassem regras para os casos em os preços de mercado se transformam em teto salarial "em função da peculiaridade da natureza da prestação de serviço e dos impactos sobre os resultados esportivos".

O COB já tinha uma normativa assim e a reformou no ano passado. Mas, dos três treinadores que mais bem remunerados, só Morlan tem currículo equivalente ao salário que recebe. O espanhol, que foi contratado no início de 2014 para lapidar Isaquias Queiroz, se encaixa no que o COB chama de "treinador AA", uma vez que cumpre o critério de ter ganhado medalha como treinador em duas das últimas quatro edições dos Jogos Olímpicos – na verdade, ganhou em todas. Para os "treinadores AA", o piso salarial é R$ 29 mil (acima, portanto, do teto constitucional) e, o teto, negociável caso a caso. Torben e Cavalheiro, porém, passam longe do perfil de "treinador AA".

Cavalheiro chegou ao COB em 2015, depois de 10 anos trabalhando no Qatar. Treinador de Robson Caetano no bronze conquistado em Seul-1988 e do revezamento 4x100m que também foi bronze em Atlanta-1996, Cavalheiro está há duas décadas longe do pódio olímpico. Ainda que seja uma referência no país, seu currículo se encaixa apenas no de treinador B, cujo teto salarial é na faixa de R$ 14 mil.

Apesar disso, ele foi contratado em 12 de janeiro de 2015 com um salário base de R$ 32 mil. À época, valia no COB uma portaria de 2013 sobre a remunerações, que só permitia salários líquidos acima de R$ 18 mil para "treinadores medalhistas olímpicos nos anos de 2004/2008/2012, em modalidades onde o mercado internacional apresenta oferta de trabalho diferenciada (basquete, vôlei e futebol), ou treinadores medalhistas olímpicos em, pelo menos, duas edições dos Jogos Olímpicos, entre os anos de 2000 e 2012". Cavalheiro não ganhou nenhuma medalha no período – o técnico do 4×100 que foi prata em Sydney-2000 era Jayme Netto.

Para pagar acima da sua própria tabela, o COB se valeu de uma exceção incluída na normativa. Ali, o comitê permite casos de excepcionalidade, autorizados pela Superintendência Executiva de Esportes do COB (à época, por Marcus Vinicius Freire), desde que o treinador "atenda a requisitos comprovados de liderança, experiência e capacidade técnica que permitam uma equiparação direta com os critérios definidos na portaria".

Além disso, o COB alegou ao blog que treinador deixou seu emprego à época, como funcionário de um centro de treinamento de Doha. E que Cavalheiro "foi contratado pelo COB para atuar no planejamento e coordenação do programa de preparação olímpica do atletismo, que contempla todas as provas onde o Brasil apresenta condições de evolução no cenário mundial, não se limitando às provas de velocidade", afirmando ainda que Cavalheiro atuou "na gestão da preparação" de atletas com Thiago Braz, Rosângela Santos e Caio Bonfim.

Oficialmente, Cavalheiro foi contratado como "para coordenar revezamentos 4x100m", como divulgou à época o COB. Mas, de fato, ele trabalhou como uma espécie de técnico-chefe do atletismo brasileiro, cumprindo uma série de funções que a Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt) alegava não ter pessoal qualificado para executar. O Olhar Olímpico tentou falar com Cavalheiro por intermédio da CBAt, mas ele não fez comentários.

Torben Grael tem situação semelhante

Um dos dois maiores medalhistas olímpicos brasileiro (divide o posto com Robert Scheidt), com cinco medalhas, Torben Grael tem um currículo incomparável como velejador. Mas não como treinador. Quando foi contratado pelo COB para assumir o posto de técnico-chefe da seleção brasileira de vela, ele nunca havia desempenhado oficialmente essa função.

Em 1º de agosto de 2013, quando assinou com o COB para receber um salário base de R$ 24.195, Torben sequer podia se orgulhar do currículo da filha, que viria a se tornar vice-campeã mundial da classe 49erFX pela primeira vez apenas no fim do mês seguinte.

Ainda assim, o COB ofereceu para Torben o teto salarial de um "treinador A" – R$ 18 mil líquidos. Mas o velejador não se encaixava em nenhum dos critérios: "treinador medalhista olímpico em, pelo menos, uma edição dos Jogos Olímpicos, entre os anos de 1992 e 2012; ou treinador de equipes olímpicas nos anos de 2008 ou 2012, que obtiveram entre a quarta e sexta colocação em esportes individuais; ou treinador medalhista de provas olímpicas, em Campeonatos Mundiais adultos em, pelo menos, uma edição entre os anos de 2003 e 2013".

Para justificar a contratação, o COB argumenta que a vela tem como peculiaridade a importância do conhecimento técnico de um timoneiro, que pode ser transportada para o cargo de treinador. Além disso, o mercado da vela envolve altos valores financeiros e, para ter Torben, sofria a concorrência da vela oceânica, onde ele provavelmente receberia salários inclusive melhores.

Como técnico-chefe da seleção brasileira, Torben viu Martine e Kahena ganharem o ouro na Rio-2016, o primeiro de sua carreira como técnico. Quatro anos e meio depois de ser contratado, Torben ganhou um aumento, que o COB explica ter sido "devido a acordo estabelecido no momento de suas contratação e decorrente da excelente performance obtida pelo país no Mundial".

Hoje, Torben é o treinador mais bem pago do COB, recebendo R$ 37.425 por mês. O valor é superior também ao que determina uma nova portaria, publicada no ano passado, ainda na gestão de Carlos Arthur Nuzman, e só agora tornada pública. Nesta nova portaria, um "treinador A", como ele, deveria receber até um teto de R$ 29 mil.

Procurado pelo Olhar Olímpico, Torben argumentou que recebeu uma oferta de emprego e a aceitou. Ele argumentou que cumpriu bem seu papel. "Consegui o que me programei pra fazer. Na Olimpíada fizemos um ouro, dois quartos lugares e finais em sete das 10 classes. Tenho minha consciência tranquila", afirmou.

O que diz o COB:

"A elaboração de portarias relacionadas à normatização de remuneração de profissionais responsáveis pelo treinamento de Alto Rendimento foi uma necessidade administrativa e operacional do COB, a fim de que fosse ordenada a contratação de profissionais atuantes na preparação de atletas e equipes por diversas entidades, incluindo o próprio COB.

O trabalho foi precedido por pesquisas de mercado que envolveram confederações, clubes, comitês, conselhos federais e entidades internacionais. Nesse sentido, foram elaboradas duas normativas. Inicialmente foi divulgada a Portaria 02/2013, depois reeditada através da publicação da Portaria 16/2017, que orientaram todas as contratações realizadas desde 2013.

Os profissionais citados foram contratados observando-se todos os requisitos e condições apresentadas nestas portarias incluindo seus valores individuais iniciais de contratação.

Os valores iniciais de contratação, de cada treinador citado, foram estabelecidos após negociação individual com cada profissional, considerando os valores de mercado estabelecidos na Portaria em vigor, os valores concorrentes no mercado internacional, a exclusividade do trabalho a ser desenvolvido e requisitos comprovados de liderança, experiência no esporte e na função, títulos conquistados e capacidade técnica previstos nas Portarias já citadas.

 O COB cumprirá todas as determinações do Tribunal de Contas da União e previstas na legislação brasileira.

Sobre o autor

Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.

Está disponível para críticas, elogios e principalmente sugestões de pautas no demetrio.prado@gmail.com.

Sobre o blog

Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.