Topo

Olhar Olímpico

David Moura devora livros e estuda política enquanto mira vencer Riner

Demétrio Vecchioli

14/09/2017 04h00

João Derly é deputado federal. Rogério Sampaio, secretário nacional de esporte de alto rendimento. Aurélio Miguel, vereador de longa data. Transformar ídolos em políticos parece ser uma tradição do judô brasileiro e o próximo da fila já está se preparando. Vice-campeão mundial de judô há duas semanas, David Moura estuda ciência política, devora livros sobre o tema com o mesmo apetite que ataca seus rivais, diz que nunca parou para pensar no "depois", mas não descarta de fato seguir uma vida na política.

"Minha carreira vai muito melhor quando eu estou estudando. Muito melhor! A gente não pode por todas as expectativas numa cesta só. Estou construindo uma família ótima, estou estudando, me tornando mais inteligente. Quando uma das coisas não dá certo, tem várias outras dando certo", diz David. No caso, parece que tudo está dando certo para ele. Líder do ranking mundial, empresário bem sucedido e, daqui a um mês, papai de primeira viagem. Sorte no jogo e no amor.

David se expressa bem, é bom de papo, mas não gosta de falar de política, ainda que leia pelo menos 30 livros por ano, sem contar aqueles obrigatórios da faculdade, que ele faz à distância. "Não falo minha opinião até que eu tenha certeza do que eu estou falando. Eu ainda tenho que estudar um monte. Por isso, me privo de dar minha opinião. Tem coisa que eu achava ano passado eu não acho mais hoje. Quero estudar por muitos anos, formando uma malha para ter uma visão mais ampla da coisa."

Ainda que já tenha entrado na casa dos 30 anos, David é um personagem pouco conhecido no esporte brasileiro. Filho e sobrinho de judocas campeões sul-americanos (o pai, Fenelon Oscar Muller, também peso pesado, em 1975, o o tio por parte de mãe Luiz Virgílio Moura, em 1979, um ano antes de disputar a Olimpíada), ele cresceu no tatame, mas teve que se afastar da modalidade aos 16 anos, após sofrer uma lesão grave no joelho.

Após passar pelo boxe e chegar a realizar algumas lutas, voltou ao esporte quando já estava com 20 e era apenas faixa roxa. Foi paixão a segunda vista. Para treinar judô, largou o curso de ciências políticas em uma universidade pública e, quatro anos depois, vendeu para o irmão a loja de uniformes escolares, devolveu aos pais a cantina da qual tomava conta e resolveu que era a hora de apostar.

Diferente da maioria dos bons judocas do país, como o próprio Rafael Silva, seu rival da mesma categoria peso pesado, que trocou cedo o interior do Paraná pelo Pinheiros, David Moura nunca quis sair de Cuiabá, sua cidade natal. "Ouvi de quase todo mundo, de colega da seleção, que era impossível se eu continuasse em Cuiabá. Mas eu nunca tive dúvidas, até pelas condições que eu tenho, de família, eu consegui construir uma estrutura para mim. Voltei ao judô com 20 anos e ganhei uma medalha com 30. A lógica diria que eu não conseguiria."

Treinando no dojô de casa, David chegou à seleção em um momento no qual Rafael Silva era soberano na categoria, medalhista em Mundial e Olimpíada. Firme na decisão de permanecer em Cuiabá, parou de rodar de academia em academia e decidiu montar a dele próprio, no mesmo prédio no qual funciona a escola dos pais, da qual ele também é sócio. "Cada turma tem uma fila de espera de mais de 50 alunos", conta, orgulhoso, o empreendedor que ainda é dono de uma escola de ballet.

O sucesso nos negócios e também no esporte – tem bolsas e patrocínios – o permitiram fazer um investimento peculiar. David tem quatro sparrings "profissionais". São quatro judocas pesados que ele mantém em uma casa em Cuiabá pagando hospedagem, alimentação e uma ajuda de custo. Contando com outros judocas da cidade, são pelo menos oito atletas que o ajudam a treinar e, claro, se aproveitam do líder do ranking mundial para também crescerem. Ainda que a própria academia seja federada, David compete nacionalmente pelo Instituto Reação, do Rio.

Vem ouro – Lembram daquela parte que que David disse que: "Não falo minha opinião até que eu tenha certeza do que eu estou falando". Levem em consideração essa informação antes de lerem essa outra declaração do judoca: "Se a confederação quer alguém para ganhar do Riner, eu estou hoje um passo à frente de qualquer outro judoca no mundo".

Não é pouca coisa. Contextualizando: o francês Teddy Riner não perde uma luta no peso pesado desde 2008, quando foi derrotado nas quartas de final dos Jogos Olímpicos de Pequim e costuma passar como um trator por quem vê pela frente. Foi contra Riner a final do Mundial, levada por David Moura até o golden score (quando o combate termina empatado nos 4 minutos regulamentares). Foram mais dois minutos de duelo equilibrado até que, num vacilo de David, Riner encaixou o wazari.

"Na hora fiquei chateado, porque eu vi durante a luta que ele estava meio cansado. Na real, quando perdi eu fiquei triste, porque perdi uma grande chance. Por outro lado, a gente tem que olhar o lado bom. Fiz um puta Mundial. Eu tenho mais três anos para evoluir bastante, enquanto ele está no auge. Ele não tem mais o que melhorar. Eu acho que a chance de nos próximos anos eu ganhar dele é cada vez maior", aposta David.

Fazendo uma temporada perfeita, o brasileiro se tornou líder do ranking mundial e, por isso, entrou no Mundial em uma chave oposta à de Riner, que compete pouco e por isso era só o segundo da lista (e ainda é). Toda a preparação foi para pegar o francês na final e por pouco o plano deu errado. Depois de avançar à final, David viu Riner conseguir virar o corpo numa queda para evitar a eliminação para um georgiano na semifinal. Ali, o sentimento foi dúbio.

"Fiquei apreensivo. Passou duas coisa na minha cabeça. Se o georgiano fosse pra final, eu ia matar esse georgiano. Pensei: vim tão preparado que, quando eu mentalizei o Mundial, era sempre ele (Riner) na final. De certa forma, eu ficaria até decepcionado, porque era meu dia de ganhar dele", admite David, que já se recuperou da derrota na final e, quando fala do Mundial, repete com orgulho quão perfeita foi sua atuação. "Estava em estado de flow", resume.

Rivalidade – David também já se recuperou do baque de ficar fora da Olimpíada do Rio. Isso aconteceu porque a comissão técnica da seleção o preteriu na disputa contra Rafael Silva, ainda que David tivesse melhores resultados no ano anterior à convocação, com mais vitórias sobre atletas que iriam para a Olimpíada. "Eu sempre soube que, para ser convocado, que teria que estar sem dúvida melhor que ele. Por todas as conquistas dele, ele (Baby) saía na frente", avalia o cuiabano, que admite sua parcela de culpa. "Tive algumas oportunidades de carimbar o passaporte e deixei oportunidades passaram. Perdi lutas que não poderia perder".

Um ano depois, o jogo virou. Não que Rafael Silva esteja mal. Foi bronze na Olimpíada do Rio e, no Mundial de Budapeste, repetiu o resultado, perdendo também apenas para Riner. Mas David tem certeza que sua fase é melhor. "Se fosse mês que vem eu seria o atleta da Olimpíada. Não só por ter sido prata, mas pela forma com que eu lutei. Eu ganhava, mas as vezes cometia besteira que perdia para cara que não era para perder. Nas ultimas competições eu mostrei que não tem nada de instável."

Os critérios para os Jogos de Tóquio ainda não foram definidos nem pela federação internacional e, consequentemente, nem pela confederação brasileira, mas David sabe que, com a prata conquistada neste Mundial, seu currículo já não fica devendo ao de Baby, dono de cinco medalhas em grandes eventos nos últimos seis anos.

Engana-se quem pensa que eles são rivais. Podem não ficar "de muitos amores" quando a disputa por uma vaga está acirrada, mas aproveitam o fato de competirem na mesma categoria para se ajudar. "No Mundial, por exemplo, a gente aqueceu junto, temos uma uma relação muito saudável. A gente conversa, troca informações. A gente quer muito a mesma coisa, mas nesse início de ciclo a gente pode se ajudar bastante. Quando estou perto dele quero aproveitar e ele também tem esse pensamento com relação a mim. Isso é muito saudável para a gente."

Sobre o autor

Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.

Está disponível para críticas, elogios e principalmente sugestões de pautas no demetrio.prado@gmail.com.

Sobre o blog

Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.