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Olhar Olímpico

Pivô do maior escândalo de doping do país volta à confederação de atletismo

Demétrio Vecchioli

15/08/2019 04h00

Jayme Netto, durante treinamento. (Presidente Prudente (SP), 08.08.2000. Foto de Juca Varella/Folhapress)

Pivô do maior escândalo de doping da história do esporte brasileiro, o técnico Jayme Netto está de volta. Nesta quinta-feira (15), ele assume o cargo de treinador das provas de velocidade do Centro Nacional de Desenvolvimento do Atletismo, exatamente no mesmo local, Bragança Paulista (SP), onde um dia ele comandou um amplo esquema de doping. Contratado pela Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt) para ser uma espécie de consultor para as provas de velocidade em todo o país, terá um salário mensal de R$ 6 mil.

"A gente amadurece, cresce. Esses anos parecem ter um significado muito maior depois de tudo que eu passei. Essa é a forma que eu tenho de fechar esse capítulo. Se não fosse meritocracia eu não teria como voltar. Eu paguei pelo que eu fiz e essa é uma vaga que eu conquistei por direito", disse, ao Olhar Olímpico, o treinador que tem no currículo seis Olimpíadas e 10 Mundiais – ele estava à frente dos três times brasileiros medalhistas nos 4x100m (prata no masculino em 2000 e bronze no masculino e no feminino em 2008).

Jayme foi escolhido em um edital público aberto pela CBAt em julho e que buscava contratar seis treinadores para atuarem no CNDA, montado pela CBAt na pista onde no passado funcionou a Rede Atletismo, clube que Jayme comandava e que acabou depois do escândalo.

Por ser um cargo mais ligado a consultoria técnica do que ao trabalho de beira de pista, a CBAt colocou no processo seletivo critérios que privilegiam bons currículos, dando pontos extras por títulos acadêmicos, anos de experiência e medalhas em diversos eventos, de Troféu Brasil a Olimpíada.

Dentro desses critérios, Jayme é imbatível. Treinador há 43 anos (dos quais quase oito cumprindo suspensão), ele é livre docente de UNESP, tem mais de 50 trabalhos publicados em revistas científicas e mais de 240 em congressos. São três medalhas olímpicas e mais de 200 em edições do Troféu Brasil. No processo seletivo, ele somou 48,83 pontos, contra 44,50 de Katsuhico Nakaya, técnico do revezamento 4x100m do Brasil nos últimos anos.

Jayme voltou ao atletismo em 2016, quando acabou uma suspensão de quatro anos imposta a ele pelo Conselho Regional de Educação Física (CREF). O órgão, porém, levou três anos e meio para julgar um recurso de primeiro grau, o que fez com que ele ficasse sete anos e meio afastado, no total. No atletismo, ele chegou a ser banido, mas recorreu à Corte Arbitral do Esporte (CAS), na Suíça, e cumpriu uma pena de quatro anos. Livre docente e hoje professor aposentado com um "ótimo salário" (palavras dele), ficou nove meses afastado mas retornou à Unesp porque sua ligação é com o departamento de fisioterapia, onde punições do CREF não têm impacto.

Na universidade, em Presidente Prudente (SP), ele chegou a trabalhar com corredores da seleção brasileira como Codó (José Carlos Moreira), Bruno Lins e Rodrigo do Nascimento (que esteve nos Jogos Pan-Americanos de Lima). Mas, sem CREF e rejeitado por boa parte da comunidade do atletismo, Jayme passou anos nas sombras. Conversava com atletas nos estacionamentos dos estádios durante as competições e, uma vez nas arquibancadas, tentava passar desapercebido.

Em agosto de 2009, Jayme assumiu a culpa  pelo doping sistemático de cinco integrantes da delegação brasileira que disputaria o Mundial de Atletismo daquele ano. Na ocasião, ele convocou entrevista coletiva e disse que outros atletas brasileiros também podem ter, inconscientemente, feito uso de EPO (eritropoietina).

Até então não existia exame antidoping fora de competição no atletismo brasileiro. Quando os primeiros exames foram realizados, atingiram em cheio os atletas da Rede. Foram pegos Bruno Lins, Jorge Célio da Rocha Sena, Josiane da Silva Tito, Luciana França e Lucimara Silvestre, que, segundo o treinador, nunca souberam que estavam sendo medicados com substâncias proibidas.

Em sua defesa, Jayme disse ter sido induzido a ministrar EPO pelo fisiologista Pedro Balikian Jr., que acabou demitido da Unesp. A intenção era acelerar a recuperação física dos atletas. "Sei que o treinamento é importante, mas há substâncias que podem favorecer. Ele me explicou que essa contribuiria na recuperação, e eu acreditei. Não minimiza o meu erro. Mas ele me apresentou diversos estudos que mostraram a eficiência da substância e me garantiu que não haveria risco [de ser flagrado]", disse o treinador na ocasião.

Depois do fim da suspensão, ele passou a prestar consultoria para o Benfica, de Portugal, que tem uma das equipe mais fortes da Europa. Seus poucos atletas hoje estão ali, enquanto as portas do atletismo brasileiro seguiam fechadas a ele. Agora, elas se abrem por meio de um processo seletivo que não poderia colocar vetos a quem um dia cumpriu qualquer pena – da mesma forma que atletas um dia suspensos podem voltar a ser convocados.

Sobre o autor

Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.

Está disponível para críticas, elogios e principalmente sugestões de pautas no demetrio.prado@gmail.com.

Sobre o blog

Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.