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Olhar Olímpico

Obra do "muro do Doria" na USP para no meio e prejudica a raia olímpica

Demétrio Vecchioli

28/03/2019 12h00

João Doria inaugura obra da raia da USP (HELOISA BALLARINI/SECOM)

O muro que separa o campus da USP e a marginal do Rio Pinheiros deveria ser um novo marco arquitetônico de São Paulo. Uma vitrine não só para cidade ver o que acontece dentro da sua maior universidade, mas também para a carreira política de João Doria (PSDB). Ainda que a USP seja ligada ao governo do Estado, partiu dele, então prefeito, a iniciativa de reunir empresas que doariam a obra sem pedir nada em troca. Um ano depois de Doria inaugurar a primeira parte do painel, a obra está completamente parada. Só metade do muro foi entregue.

Mais do que isso: a razão de existir da raia olímpica, a prática esportiva, é quem mais sofre. Inaugurada oficialmente em 1973, a raia nunca havia sofrido com erosões. Agora sofre. Em quatro trechos, a água engoliu parte da margem. Junto com a terra, foram engolidas duas árvores. Os 12 vidros quebrados são 12 janelas para a entrada de pessoas sem autorização. A pista de caminhada que existia entre a raia e o muro virou canteiro da marginal: sem mais nem menos, a obra engoliu cerca de 10 mil metros quadrados de área da USP.

O primeiro trecho do projeto foi realizado em tempo recorde, tão rápido quanto a passagem de Doria pela prefeitura. Ele anunciou a obra em 19 de julho de 2017, em entrevista coletiva, prometendo um novo "cartão postal" para a cidade. Na ocasião, anunciou 11 empresas "parceiras" que bancariam a obra – a lista subiria para 45 após alguns dias. Menos de nove meses depois, foi o prefeito quem cortou a faixa inaugural do painel, em 4 de abril de 2018, dois dias antes de abandonar o cargo para concorrer ao governo do estado. A promessa foi entregar o trecho restante em maio de 2018.

Desde então, passou-se um ano e a obra foi desacelerando. De acordo com frequentadores, os últimos funcionários que trabalhavam no canteiro passaram pela raia no fim de dezembro. Quando o ano virou e Doria assumiu o governo do Estado, os trabalhos simplesmente pararam. Desde então, só aparece por lá um funcionário da Secretaria Municipal de Obras, de nome Severino. Ele vai à raia de vez em quando para checar se está tudo parado. E sempre está. O antigo galpão de obras tem dois blocos de tijolos e um banco quebrado.

Dos 2.200 metros contínuos de painel que deveriam ser construídos, apenas cerca de 1.000 estão de fato concluídos, separando a marginal e a USP. Outros 500 metros estão em parte prontos, mas ainda não entregues – nesse trecho, ainda existe o antigo muro e mais de 20% dos vidros estão quebrados, não foram instalados ou estão apenas apoiados. Nos 300 metros seguintes, o "novo muro" tem os suportes de alumínio, mas não os vidros. Nos 400 metros restantes, a obra está crua.

A prefeitura chegou a divulgar que cada peça de vidro custaria R$ 4 mil, tendo sido doada por uma empresa especializada. Atualmente, existem sete suportes de vidros abandonados, tanto do lado de dentro quanto de fora da USP. A reportagem contou ao menos 30 peças de vidro complemente a mercê de aproveitadores. Um patrimônio de R$ 120 mil, sem dono.

Ninguém tem culpa

"Prefeitura entrega primeira etapa do muro", divulgou a secretaria de comunicação da prefeitura, com destaque, em 4 de abril de 2018. Faltou falar, naquele momento, que "a obra não é de responsabilidade do município", como respondeu agora a mesma secretaria, ao Olhar Olímpico, quando questionada sobre a paralisação da obra.

"O muro de vidro foi viabilizado por meio de parcerias com a iniciativa privada, após entendimento entre a Prefeitura e a USP, que realizou chamamento público dos parceiros", continuou a prefeitura, citando que doou 84 câmaras de segurança à USP – de acordo com funcionários, só existem três para garantir a segurança de toda a área da raia, uma em cada extremo e uma no meio da raia.

Formalmente, o que aconteceu foi o seguinte: Doria procurou a Setin Incorporadora pedindo que esta arregimentasse fornecedores dispostos a doar material para a obra, assim como procurou a USP propondo a intervenção. Coube à universidade abrir um chamamento público, formalidade no qual perguntou ao mercado quem estava disposto a fazer doações. Quem doou, o que foi doado e qual o valor das doações são perguntas que a USP nunca respondeu.

Pessoas que lidaram com a obra, porém, sempre tiveram uma certeza: aquela era uma obra da prefeitura de São Paulo. O entendimento é reforçado pela postura de Doria, "O prefeito João Doria entregou nesta quarta-feira a conclusão da primeira etapa do novo muro", escreveu a assessoria de comunicação dele na ocasião da inauguração do primeiro trecho. Na ocasião, foi divulgado um investimento de R$ 20 milhões, por parte de 45 empresas parceiras.

Prefeitura e USP não falam sobre o assunto. O Olhar Olímpico enviou 11 perguntas à universidade. Obteve a seguinte resposta: "As obras estão paralisadas desde o último trimestre do ano passado à espera de um necessário ajuste no projeto de instalação, que deve envolver a prefeitura, as empresas e a USP". A USP se recusou a detalhar qual o ajuste necessário e por que a prefeitura foi incluída. Já as nove perguntas enviadas à prefeitura tiveram como resposta a indicação de que "a obra não é de responsabilidade do município".

Via assessoria de imprensa, Doria respondeu à reportagem afirmando que iniciou o processo de revitalização da raia da USP como prefeito de São Paulo e que "acredita que a continuidade do projeto e sua manutenção serão realizadas pelos atuais responsáveis", sem citar quem seriam esses responsáveis. Se a responsabilidade for da USP, o próprio Doria seria o responsável, já que a universidade é estadual. 

 

Prejuízo esportivo

A reportagem do Olhar Olímpico esteve no local na semana passada e constatou quatro pontos de erosão em que a raia "engoliu" a margem. Frequentadores antigos dizem que isso nunca havia ocorrido e culpam as obras que alteraram o entorno. Em duas dessas erosões, árvores tombaram dentro da raia, prejudicando o treinamento de centenas de remadores que passam por ali todos os dias.

Pior ainda para quem caminhava no entorno da raia. Diferente do que foi combinado no início das obras, o novo painel não substituiu o antigo muro. Ele foi construído mais de quatro metros para "dentro" da raia. Isso fez com que a área de caminhada, que antes ficava intramuro, agora seja canteiro lateral da marginal, inacessível para pedestres – o trecho começa em um muro e termina em um muro, sem acesso a calçadas. O escritório de arquitetura Jóia Bergamo, que fez o projeto, não respondeu as questões feitas pelo blog.  

O que sobrou para dentro do muro é quase inacessível. Este repórter passou por apuros tentando dar a volta na raia. Em determinado trecho, foi feita uma barreira de entulhos, exatamente para impedir a passagem de pedestres no que deveria ser uma pista de caminhada. Nos 2 mil metros de extensão da margem, há muito vidro jogado no chão, pedaços de madeira e restos de concreto.

Inaugurada na década de 1970, a raia tem um sistema hidráulico próprio, no qual a água só entra por precipitação. Não há contato com a água externa. A chuva que cai sobre a marginal até entra, por canos, no terreno da raia. Mas ela é drenada e jogada no rio Pinheiros. Isso em tese. Por algum motivo, o nível da água da raia subiu cerca de 70 centímetros em março, muito acima do usual. Uma das explicações, segundo pessoas que frequentam o local, seria que o sistema de captação da nova obra é insuficiente.

Apesar disso tudo, a principal ação da Secretaria de Esporte da gestão Doria no Estado foi o anúncio de que uma etapa do Ironman vai acontecer em São Paulo, no segundo semestre, exatamente na raia da USP e no seu entorno. Desde o final de 2017, porém, ninguém testa a água do local para verificar se ela está apta para banho.

Sobre o autor

Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.

Está disponível para críticas, elogios e principalmente sugestões de pautas no demetrio.prado@gmail.com.

Sobre o blog

Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.