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Olhar Olímpico

Esporte usado em massacre de "Roma" perdeu status de guerra

Demétrio Vecchioli

07/03/2019 04h00

Campeonato Brasileiro de Kendo (divulgação)

Foram mais de seis meses de treinamento para a cena em que Fermin aparece nu diante de Cleo (interpretada pela indicada ao Oscar Yalitza Aparicio). Com um bastão, o personagem interpretado por Jorge Antonio Guerrero treina movimentos contra um adversário imaginário. Dali algumas cenas, os golpes, também ensaiados em um treino coletivo em um campo de várzea em outro momento marcante do filme Roma, serviriam de instrumento de um massacre. Na aclamada obra de arte do mexicano Alfonso Cuarón, Oscar de melhor diretor e de melhor filme estrangeiro, o kendo é retratado como ele foi usado na década de 1960, no México: para matar. Uma deturpação de uma arte marcial criada para a paz.

A origem do kendo data de pelo menos sete séculos atrás, no Japão. Enquanto Portugal e Espanha começavam a explorar a América, o Japão vivia um longo período de Guerras Civis. Foi nessa época em que se aprimorou o kenjutsu, a técnica de luta com espada. Quase 400 anos depois, já durante o chamado Período Meiji, o Japão passou a conviver com uma paz duradoura, em que inclusive a classe dos samurais foi extinta.

"Mas havia muito conhecimento acumulado durante séculos sobre o uso da espada. Por isso, durante o Período Meiji, o kenjutsu foi transformado em uma prática esportiva, perdendo o status de prática de guerra", explica Vitor Zen Tachibana, um dos principais atletas de kendo no Brasil.

Isso não significa que o kendo tenha se estruturado como modalidade esportiva por aqueles tempos. Isso só veio ocorrer já na década de 1970, quando foi criada uma federação internacional que padronizou não apenas regras, mas também a rígida cartilha "filosófica" em torno do kendo. "Até então, acontecia de cada um pegar o elemento que quisesse do esporte, de acordo com o seu interesse. Provavelmente foi isso que aconteceu no México", continua Zen.

Reprodução/Facebook

Kendo no Brasil

Taeko Takeuchi é uma senhora de 71 anos de estatura baixa e português correto, ainda que de vocabulário modesto. É ela quem lidera um dos principais centros de treinamento e aprendizagem do kendo no Brasil, na Associação Cultural Mie Kenjin do Brasil. O prédio, vizinho ao metrô Vila Mariana, em São Paulo, foi construído pelos imigrantes japoneses de São Paulo originários da cidade de Mie, e bancado pelo governo local.

Responsável por cuidar de uma biblioteca de mais de 300 livros sobre kendo – todos escritos em japonês -, Taeko é uma árdua defensora das tradições da modalidade que ela aprende há exatos 30 anos. Ela tinha 41 quando o marido, Keni Chi, resolveu que toda a família deveria aprender junta uma arte marcial. Ele faleceu alguns anos atrás, mas Taeko e as duas filhas continuam treinando toda segunda-feira.

A idade já permite a ela um luxo: não lava mais o chão. Como ensina a tradição, Taeko estimula os alunos a limparem o dojô de madeira com pano úmido, mas sem rodo. O pano é esfregado no chão, ao mesmo tempo, com os joelhos e as mãos. Depois, há um modo todo especial de torcer o pano. "É também uma forma de treinar como se deve torcer o bambu", ela explica.

Conversamos em uma salinha cheia de troféus e antigos livros japoneses, no andar de cima ao treino. Em alguns momentos era impossível ouvi-la. O treino de kendo é assustador para quem apenas o ouve. Os gritos, altos, vêm acompanhados de sons graves tão altos quanto. Parece que há alguém apanhando, mas na verdade aquele é barulho do pisão firme no chão ao se aplicar um golpe.

O kendo é um esporte para privilegiados, diz Taeko. Só treina kendo quem tem a sorte de ter um local de treinamento por perto, quem é estimulado pelos pais, e quem tem recursos financeiros. Assim como na esgrima, treinos e competições exigem um fardamento adequado e caríssimo. Com menos de R$ 5 mil não há como treinar adequadamente.

É preciso se proteger, porque o kendo pode ser um esporte perigoso. A vara de bambu, dividida em quatro gomos, deve estar sempre apontada para o pescoço do rival – mais exatamente para a goela. Quanto mais experiente é o atleta, mais ele vai conseguir manter a vara na posição correta, para se defender e para aplicar os golpes.

Na paz

Ainda que não seja pontiaguda, a shinai (vara de bambu) não deixa de ser uma espada. Isso significa que ela é uma arma branca e não pode ser carregada fora de um recipiente apropriado. A lembrança de que aquela é uma arma também está presente o tempo todo nos treinamentos e nas competições. Os golpes só valem quando dados no ângulo correto.

"Você precisa sempre lembrar que se você tivesse com uma espada, você teria cortado a cabeça do seu oponente no meio", lembra Celso Takayama, um dos senseis da Mie. "Por isso, você não pode comemorar uma vitória. É um sinal de respeito. Se você venceu, você provavelmente teria matado seu adversário", explica o sensei que, como é tradição no kendo, não cobra para ocupar a função de treinador.

Celso foi o grande nome do Brasil no mais recente Mundial de Kendo, realizado no ano passado na Coreia do Sul, chegando até as quartas de final. Repetiu o feito de Roberto Kishikawa, que havia chegado lá em 1988, antes de se tornar um ícone do kendo mundial. Roberto é o primeiro não-japonês a obter o oitavo dan, antepenúltima escala hierárquica do kendo.

Atualmente, porém, ele mora e treina em Hong Kong e tem pouco contato com os líderes do kendo brasileiro, entre eles Celso, seus irmãos Alberto e Thomas, e a cunhada Tábita, todos integrantes da seleção que disputou o Mundial do ano passado.

Roma

Roma é um filme de ficção, os personagens são fictícios, mas o pano de fundo associado ao kendo é real. O evento conhecido como "Massacre de Corpus Christi" aconteceu em 10 de junho de 1971, na Cidade do México, quando mais de 100 estudantes indefesos foram mortos a tiros, muitos vindos de prédios, durante um protesto contra o presidente Luis Echeverría Álvarez.

Os atiradores eram membros de um grupo paramilitar denominado Halcones (Falcões), formado por jovens recrutados na periferia das grandes cidades, em uma resposta do governo aos incidentes que originaram outro massacre, de Tlatelolco, em 1968 – na ocasião, a polícia matou mais de duas centenas de estudantes para reprimir um protesto. A ideia é que os paramilitares fieis ao governo, infiltrados entre os estudantes, ajudassem a inibir novos atos.

Para tanto, receberam treinamento militar, supostamente da CIA – em Roma, Fermin treina em um grande campo de futebol, orientado por um treinador norte-americano com o boné da CIA, em um bairro onde ainda são visíveis as propagandas eleitorais em prol de Luis Echeverría Álvarez. No dia de Corpus Christi de 1968, esses paramilitares montaram tocais para os estudantes. Pularam de caminhonetes e caminhões inicialmente os atacando por trás com as varas de bambu. Depois, os atiradores fizeram o restante do serviço.

Sobre o autor

Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.

Está disponível para críticas, elogios e principalmente sugestões de pautas no demetrio.prado@gmail.com.

Sobre o blog

Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.