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Olhar Olímpico

Como agência de marketing ganhou R$ 3,2 mi para transportar crianças em SP

Demétrio Vecchioli

04/09/2018 13h30

Uma agência de marketing sem telefone ou e-mail ativos ganhou um contrato de R$ 3,2 milhões para transportar cerca de 10 mil crianças e adolescentes. Para que isso fosse possível, o Governo do Estado de São Paulo adiou os Jogos Escolares quando faltavam menos de 24 horas para seu início, exonerou o pregoeiro que aceitou seis recursos contra tal contratação e colocou, em seu lugar, uma funcionária que é ré por improbidade administrativa. A acusação que pesa contra ela: fraudar pregões para contratação de empresas de transporte. Já a empresa contratada é investigada pela Corregedoria do Estado, por supostas fraudes na organização e operação do mesmo evento nos últimos dois anos. Agora, vai transportar os alunos sem autorização da Artesp, em veículos mais velhos do exigido em edital.

A figura central nessa história é Karina Florido. Como já mostrou o blog, ela teve um crescimento relâmpago na Secretaria de Esporte (SELJ). Diversos funcionários apontam que é ela a secretária de fato, não Cacá Camargo, que assumiu o cargo em 14 de maio, indicado pelo PROS após seu partido costurar acordo de apoio ao governador Márcio França (PSB) na eleição de outubro.

Inicialmente contratada como assessora, Karina foi promovida a coordenadora de Esporte depois de dois meses. Trocou de cargo com um funcionário que recebeu R$ 104 mil em sua conta pessoal para alugar o Ibirapuera, após denúncia feita pelo blog. Pelas mãos dela passam todos os grandes contratos da secretaria e com os Jogos Escolares não foi diferente. Há cerca de 20 dias, o Olhar Olímpico esteve com um ex-funcionário da SELJ que alertou sobre o grande risco que pairava sobre o edital agora contestado.

Passo a passo

A fase final dos Jogos será realizada em duas cidades: Americana e Sertãozinho, ambas no interior, envolvendo cerca de 10 mil atletas. O edital, lançado no dia 10, visava escolher uma empresa para transportar esses atletas antes, durante e depois dos Jogos, numa quilometragem prevista de mais de 400 mil quilômetros, a partir de 3 de agosto – logo, uma semana antes de o edital ser lançado. O pregão foi marcado para o dia 22 (quarta-feira) de manhã, com a fase final dos Jogos prevista para a manhã seguinte.

Tinha tudo para dar errado, e deu. Inicialmente, a Viação Mimo ofereceu o menor preço. Mas, encerrado o pregão, recuou. "Nosso preço é inexequível. Houve interpretação da proposta, pois estava muito confusa", explicou a empresa, durante o pregão eletrônico, meia hora depois de dar o lance. Passou a valer, então, a segunda melhor proposta, da PPR Live Marketing.

Ao enviar sua documentação no pregão online, a PPR mostrou que, na Junta Comercial de São Paulo, estava inscrita para fazer mais de uma dezena de atividades. Nenhuma delas relativa a transporte de passageiros. Em síntese, mostrou ser uma agência que faz de produção teatral a distribuição de notícias. Seis empresas apresentaram recursos, com essa crítica e lembrando que a PPR não tinha licença da agência reguladora de transportes de São Paulo, a Artesp, para transportar passageiros. Reclamavam que a empresa deveria ter sido desqualificada antes mesmo de o pregão começar. Os recursos foram aceitos pelo pregoeiro, Michael Campos Cunha. Como determinava o edital, ele pediu seis dias para avaliá-los.

Sem transporte, os Jogos foram adiados, causando críticas. O Olhar Olímpico noticiou o adiamento e questionou a SELJ, no mesmo dia, sobre os motivos. A resposta foi a seguinte: "Gostaríamos de esclarecer que a mudança ocorre em virtude de termos identificado falhas e fraudes no processo licitatório na contratação do transporte dos atletas. O Secretário Cacá Camargo prontamente assinou a exoneração de Michael Campos Cunha, funcionário nomeado na gestão passada, e que está envolvido nas irregularidades, e acionou a Procuradoria Geral do Estado. No sentido de dar maior transparência possível ao processo, e seguindo a Lei de Licitações, foi necessária a abertura de prazo de 6 dias úteis." O governo não informa qual seria a fraude cometida por Michael, que não quis dar entrevistas.

Coordenadora assume o pregão

Dois dias antes de a decisão ser publicada, a SELJ informou que os Jogos começariam no próximo dia 5 (quarta-feira que vem). Também na última quarta-feira, a SELJ deu um passo já previsto por fontes do Olhar Olímpico. Nomeou Karina como pregoeira, apesar de um entendimento comum por tribunais de conta de que essa é uma prática irregular na administração pública. O pregoeiro deve ser uma figura neutra, afinal. Questionada, a SELJ disse que Karina ficaria no cargo apenas de forma provisória. Exatamente o tempo necessário para julgar os recursos.

Karina negou os recursos. Para isso, se valeu do fato de, dias depois do pregão eletrônico, a PPR Live ter alterado sua inscrição na Junta Comercial, declarando-se agora também uma empresa de transporte de passageiros. "Ao analisarmos os documentos apresentados pela empresa PPR Live, verificamos que seu objeto social é totalmente compatível com o objeto da licitação em questão, uma vez que consta de seu contrato social, bem como de sua inscrição municipal, os serviços de "transporte rodoviário coletivo de passageiros", decretou a nova pregoeira.

Karina também alegou que, nos últimos dois anos (logo, durante a gestão de Paulo Maiurino na secretaria e de Geraldo Alckmin no governo do Estado), a PPR também realizou esse serviço. "Nos últimos dois anos, foi esta empresa a responsável pela execução dos serviços ora licitados e que necessários para a realização dos Jogos Escolares do Estado de São Paulo", escreveu ela. Nas duas ocasiões, a mesma empresa (que antes se chamava Pepper Comunicação Estratégica) foi contratada para fazer toda a organização dos Jogos, de equipamentos a alimentação, passando pela parte esportiva. À época, terceirizou o transporte. Em dois anos, recebeu mais de R$ 24 milhões.

Questionada pelo blog, a SELJ informou que a PPR cumpriu todas as exigências legais e que apresentou autorização da Artesp em nome de uma terceira empresa, WL Transportes. Por e-mail, enviou as licenças de nove veículos, todos com menos de 50 lugares e, quatro deles, com mais de oito anos de uso. O edital é claro na exigência: "O ônibus deve estar em perfeito estado de conservação (…), idade máxima de 8 anos e com no mínimo 50 lugares".

O passado

Três fontes do Olhar Olímpico já haviam alertado sobre a Pepper/PPR. Todos relataram que, nos Jogos Escolares do ano passado, boa parte dos serviços foi executada pelos próprios funcionários da SELJ e pelas prefeituras que receberam os eventos. As mesmas denúncias também chegaram à Corregedoria do Estado, que abriu investigação. Mesmo assim, a SELJ deu à PPR uma carta de capacidade técnica, um certificado no qual diz que a empresa fez o serviço perfeitamente como combinado em 2017. Foi esse documento que a PPR utilizou para comprovar sua capacidade de operar como transportadora de passageiros.

Localizar a PPR é difícil. A reportagem tentou falar com a agência, mas não localizou perfis em redes sociais, apenas um site. Nele, há um telefone que aparece como "indisponível" quando chamado. O único e-mail à disposição retorna. Uma página em nome da Pepper Comunicação no Facebook, inativa desde 2016, tem poucos comentários. A maioria é de gente reclamando de calote.

Outro lado

Além de negar que a PPR tenha licença para transportar passageiros ou que tenha solicitado tal documento, a Artesp fez diversos alertas: "Qualquer viagem feita por ônibus que não tenha cadastro na Artesp é considerada irregular. As viagens intermunicipais são sujeitas a fiscalização da Artesp, podendo o veículo ser apreendido. Contratar o serviço devidamente regulamentado é essencial por questões de segurança. O serviço irregular oferece inúmeros riscos aos passageiros, uma vez que o veículo não é vistoriado, não há garantia de que o motorista seja habilitado para atuar no transporte coletivo e, em caso de acidente, não há seguro para os passageiros".

Já a SELJ enviou a seguinte nota: "O referido pregão foi realizado de acordo com as determinações da Lei 8.666/93. O ordenador de despesa é o Chefe de Gabinete, conforme disposto no Decreto-Lei n° 233, art 14 e no Decreto n° 56.637, art 31. Karina Florido é pregoeira regularmente cadastrada pela Bolsa Eletrônica de Compras (BEC) e habilitada a realizar o certame. A homologação da empresa vencedora ocorreu após a apresentação de toda documentação exigida no edital, inclusive os certificados dos veículos para o transporte de passageiros junto a Artesp, conforme documentos anexos. Em relação ao antigo pregoeiro, informamos que ele foi exonerado no último dia 31 de agosto e as denúncias contra sua atuação estão sendo investigadas."

 

 

Sobre o autor

Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.

Está disponível para críticas, elogios e principalmente sugestões de pautas no demetrio.prado@gmail.com.

Sobre o blog

Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.