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Olhar Olímpico

Seleção brasileira de hóquei tem três irmãs. E elas são argentinas

Demétrio Vecchioli

06/08/2018 04h00

Da esquerda para a direita: Eloisa, Victoria e Jacqueline. Trio de irmãs da seleção de hóquei (arquivo pessoal)

Dois irmãos jogando em uma mesma equipe já não é comum. Com nível para chegar a uma seleção nacional, torna-se um fato raro. O que se dirá então de três. Mas é isso que está acontecendo na seleção brasileira feminina de hóquei sobre a grama, que recentemente divulgou uma pré-convocação para jogar o circuito mundial com três irmãs: Eloisa, Jacqueline e Victória Peyloubet. E o detalhe mais curioso: as três são argentinas.

Todas nasceram em Buenos Aires e são filhas de uma brasileira que acabou se apaixonando por um argentino que veio passar férias em Santa Catarina. O casal foi morar na Argentina e do relacionamento nasceram nove crianças, senso seis menos, das quais três chegaram à seleção: Eloisa tem 26 anos, Jacqueline 24 e Victória, a caçula, 18.

Das três, só a mais velha jogou hóquei na Argentina, onde o esporte é tão ou mais popular, especialmente entre as meninas, do que o vôlei no Brasil. "Eu só joguei na escola, normal, igual joga-se futebol na educação física das escolas no Brasil. Só que existe essa cultura forte do hóquei lá", conta Eloisa.

A pouca experiência, porém, não impediu que o técnico e as jogadoras do Florianópolis se animassem quando ficaram sabendo do interesse de duas argentinas de jogarem pelo time – é como se dois norte-americanos chegassem para reforçar um time brasileiro de futebol americano. O passaporte é o selo de qualidade.

"A gente jogou futebol e vôlei até que um dia a gente soube que tinha um time de hóquei aqui em Florianópolis e tinha um treinador argentino. A gente entrou em contato e disse que queria jogar", lembra a mais velha. "Quando o treinador contou que ia vir duas jogadoras argentinas, todo mundo esperava que a gente fosse jogar muito bem, mas a gente não tinha experiência", reforça Jacqueline.

A vinda ao Brasil não foi por um bom motivo. O pai delas morreu no ano 2000 e a mãe levou seis anos até conseguir vender a casa em Buenos Aires e voltar para o país natal com três meninas. O hóquei foi uma forma de manter uma conexão com a Argentina, mesmo que a formação esportiva delas tenha sido toda no Brasil.

Seleção

A primeira a chegar à seleção brasileira foi Jacqueline, em 2015. A comissão técnica da seleção brasileira foi do Rio a Florianópolis para aplicar testes físicos e técnicos e convocou as duas irmãs mais velhas para uma seletiva. Jacqueline foi escolhida, mas avisou que boa mesmo era a irmã. "Eu sempre falava que a Elô é a melhor".

Elas não concorrem entre si. Elô joga no meio, enquanto Jacque é atacante, assim como a jovem Victoria, que começou no hóquei por incentivo das irmãs, especialmente a mais velha, que estuda educação física e é técnica das categorias de base do Florianópolis, um dos times mais tradicionais do país.

Este ano foi a vez de Jacque chegar à seleção, sendo convocada para os Jogos Sul-Americanos. Ali, teve a chance de pela primeira vez na carreira enfrentar a fortíssima seleção argentina. O jogo foi 13 a 0. "A gente já sabia que ia perder. Não tem como, o nível é muito diferente", diz. E como ficou o coração por enfrentar a Argentina? "Na hora do jogo, eu só queria ganhar. Fiquei até com raiva delas. Mas depois, na final, que foi entre Argentina e o Uruguai, eu torci por elas."

A discrepância técnica entre as duas seleções permite que esse sentimento patriótico seja somado, não dividido. As três irmãs não têm problema nenhum de torcer tanto por Argentina quanto por Brasil no futebol, por exemplo, nem de admitirem estarem tristes porque as Leonas – a famosa seleção argentina – caíram nas quartas de final do Mundial, na última quinta-feira.

"Eu me sentia uma argentina até ser chamada para defender o Brasil. Vestir a camisa da seleção brasileira faz esse sentimento mudar, você se sente parte. Mas é claro que eu continuo gostando da Argentina. Tenho dupla nacionalidade. Sou as duas coisas", argumenta Jacqueline. "Como todo mundo no hóquei conhece a gente, ninguém nos vê como gringas", explica.

Ligação

Jacqueline e Eloisa são melhores amigas. Nas concentrações, ficam sempre no mesmo quarto. E, no campo, se defendem como verdadeiras leoas, com o perdão do trocadilho.

"Nesse fim de semana, no Campeonato Brasileiro, a Jacque levou uma bolada na cara. Minha reação no jogo já foi outra, já fui correndo socorrer, ver quem tinha dado a bolada. Não que eu defenderia diferente uma colega de time, mas tem uma tensão a mais. Ela pode estar do outro lado do campo que se ela cair eu vou lá socorrer", diz Elô.

Cabe às duas mais velhas protegerem a caçula, que está chegando agora na categoria adulta. Ainda no ensino médio, Victória é o prodígio da família. Tímida, fala pouco, mas já tem uma outra profissão. Além de jogadora de hóquei, ela também é modelo de uma das agências mais famosas do mundo, a Ford Models. "Pretendo seguir tanto como modelo como jogando hóquei. Estou conseguindo conciliar e pretendo continuar assim", afirma.

Por enquanto, todas são atletas essencialmente amadoras. O hóquei feminino no Brasil está em estágio quase embrionário e a seleção sequer teve apoio da confederação, do COB e do Ministério do Esporte para alcançar o ranking necessário para justificar um convite para a Rio-2016. Ou seja: perdeu a chance de jogar uma Olimpíada.

Ao menos, diferente do masculino, ainda tem chances de estar nos Jogos Pan-Americanos de Lima, no ano que vem. "Existe uma evolução. Antes, tinha três times e todas as finais eram entre Florianópolis e Desterro (outro time de Santa Catarina). Esse ano, o Brasileiro tem oito times. A evolução é não só em número de atletas, mas também em nível técnico. Mas ainda assim a gente precisa pagar do bolso para ir jogar", explica Jacque, a única que tem Bolsa Atleta, porque jogou o Sul-Americano de 2016.

Sobre o autor

Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.

Está disponível para críticas, elogios e principalmente sugestões de pautas no demetrio.prado@gmail.com.

Sobre o blog

Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.