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Olhar Olímpico

Fenômeno aos 13, brasileira autodidata encara melhores do mundo na sinuca

Demétrio Vecchioli

12/04/2018 04h00

(divulgação)

"Sinuca? Mas essa menina nem tem idade para ficar frequentando bar". Tantos começarão a ler este texto com o mesmo preconceito que Nicolly Cristo tem que enfrentar todos os dias. Aos 13 anos, ela até já desistiu de explicar que não é nada disso. Que nós, brasileiros, teimamos em chamar de sinuca uma modalidade bem diferente que o mundo conhece como snooker. Que as competições não são realizadas no fundo de um boteco, mas em salões onde todo mundo veste roupa social. E que ela pode ser o que ela quiser e, no caso, ela quer ser como o Ronnie O'Sullivan.

De tantos ídolos possíveis para uma garota de 13 anos do interior de São Paulo, O'Sullivan talvez seja o mais improvável. "Eu sou a fã número 1 dele, não tem um dia que eu não veja um vídeo dele", conta Nicolly.

O'Sullivan é, para o snooker, o que Tiger Woods é para o golfe. O maior jogador de todos os tempos, recordista em títulos e premiações, um fenômeno de popularidade na Inglaterra. O cara que todo dia ensina um pouco de sua técnica a Nicolly, mesmo sem saber. São os vídeos dele que a brasileira assiste para aprender mais sobre um jogo que cai em popularidade no Brasil.

A não ser que você seja muito chegado na modalidade, é provável que você nunca tenha visto uma mesa de snooker pessoalmente. Ela tem 3,84m de extensão (um metro a mais do que as maiores mesas brasileiras) e 15 bolas vermelhas. Cada vez que uma delas é encaçapada, a próxima jogada deve mirar uma bola colorida que, após cair na caçapa, volta à mesa. Só quando as 15 vermelhas saíram do jogo é que as sete coloridas passam a ser eliminadas. Acertar todas as bolas em sequência rende 147 pontos, o que O'Sullivan já conseguiu mais de uma dezena de vezes.

A primeira vez que Nicolly encarou uma mesa dessas foi no Campeonato Brasileiro de 2016. Aos 11 anos, foi campeã. Depois, aos 12, também. No Brasil, ela só perdeu uma vez, na final da sua primeira participação na "taça ouro" do Campeonato Paulista, no começo de 2016. "Sempre fui muito competitiva. Se eu perco para alguém, treino só aquele jogo até aprender a ganhar daquela pessoa", conta a jogadora.

No mês passado, ela se frustrou por não conseguir passar à segunda fase do Mundial, disputado em Malta. Em um grupo difícil, que tinha a segunda colocada do ranking mundial e a atual campeã mundial sub-21, ganhou só um dos três jogos. Aos 13 anos, ela é cinco anos mais nova que a segunda jogadora mais nova. A média de idade das rivais é acima dos 30.

(divulgação)

Autodidata

Dizer que Nicolly começou na sinuca muito nova é chover no molhado. Sendo mais específico: ela começou a jogar quando tinha 10 anos. O pai dela, Alexandre, é um apaixonado por sinuca a ponto de investir as economias na montagem de um salão em São José dos Campos (SP), onde a família mora. O negócio não deu certo, fechou em 2014, mas a tempo de a menina pegar gosto pela coisa.

"Eu ficava no balcão e via as pessoas jogarem. Primeiro eu fui aprender as regras, que são bem diferentes, ficava perguntando como eram as regras. Aí comecei a brincar. Só quando ele fechou o salão é que eu passei a treinar de verdade", lembra.

Nicolly pediu e convenceu o pai a não se desfazer da única mesa "inglesa" do salão, que foi transportada para a casa da família. "O snooker é mais bonito, mais técnico, mais profissional", argumenta a garota. No começo, Alexandre até ensinou o que sabia, mas que também não é muito. "Ela nunca teve um treinador de verdade. O que ela aprende é nos vídeos. Ela é quem me ensina", diz o pai coruja.

Foi ela quem pediu que o pai arranjasse um torneio para que ela testasse as primeiras lições. Mas não há no Brasil qualquer torneio mirim feminino. Assim, a estreia foi na segunda divisão do Campeonato Paulista adulto, em 2015. Estreia com título. No ano seguinte, ela se tornaria campeã brasileira na primeira vez que jogou em uma mesa de 3,84m – no Brasil, só o campeonato nacional é numa assim.

Por falta de outros torneios, é mais comum que Nicolly jogue contra os homens mesmo. "Às vezes tem 30, 50 competidores em uma competição. É difícil ganhar deles, eles são mais fortes, mas eu já fui campeã algumas vezes", relata.

Mundial

Nicolly não se contenta com pouco. Campeã brasileira aos 11 anos, passou a querer mais. Assim, o passo seguinte foi disputar o Mundial Sub-21, que aconteceu na China, no ano passado. Como de costume no esporte amador brasileiro, ainda mais em uma modalidade não-olímpica, o dinheiro para a viagem veio de uma vaquinha. E, no caso de Nicolly, qualquer viagem custa em dobro, porque ela precisa ir acompanhada da mãe ou do pai.

Quinta colocada no Mundial Sub-21, ela não perdeu a oportunidade de, como campeã brasileira, viajar para Malta para a disputa do Mundial Adulto deste ano. "A viagem custou R$ 18 mil, mas a confederação só pôde ajudar com R$ 2 mil. O resto a gente teve que correr atrás com vaquinha, evento. Não tem como", lamenta Alexandre.

Ao menos as coisas melhoraram um pouco. Militante do imponente Club Homs, no coração da avenida Paulista, onde existe uma mesa do mesmo nível das britânicas, Nicolly ganhou uma mesa de tamanho oficial de uma fabricante brasileira, Jocari, na qual treina em casa – o empréstimo da mesa é em troca de divulgação. Também graças à ajuda de admiradores, tem os melhores tacos, o melhor giz e as melhores bolas do mundo.

"No Mundial a gente viu que ela é um fenômeno não só no Brasil, mas é um fenômeno mundial. A categoria dela, o talento dela… ela é um talento mundial. Isso sem nunca ter sido treinada. Todas as adversárias delas no Mundial treinam em academias, fazem toda uma preparação, têm técnico. A Nicolly não. E, pela idade dela, a gente sabe que se ela tiver oportunidade, ela vai chegar lá", avalia o pai.

E Nicolly que chegar lá. "Desde o começo eu sabia que queria levar isso para o resto da minha vida. Quero ser jogadora profissional, não penso outra coisa", diz a jogadora. No que dependesse do pai, a ida à Inglaterra ou à China para morar e treinar já até teria acontecido. "Mas falta apoio financeiro", lamenta.

Sobre o autor

Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.

Está disponível para críticas, elogios e principalmente sugestões de pautas no demetrio.prado@gmail.com.

Sobre o blog

Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.