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Olhar Olímpico

Atletas do levantamento de peso lançam boicote e podem derrubar presidente

Demétrio Vecchioli

14/03/2018 04h00

Manifesto dos atletas do levantamento de peso

Demorou, mas acabou a paciência dos atletas do levantamento de peso com o presidente da confederação, Enrique Monteiro. Depois de fazerem pouco barulho quando o dirigente cortou Bruna Piloto da Rio-2016 para convocar uma aliada e de deixarem Fernando Reis brigando sozinho pelo direito de disputar o Mundial do ano passado, agora eles estão unidos contra Enrique. No fim de semana, ninguém topou participar do que deveria ser a seletiva para o Campeonato Pan-Americano, organizado no Rio de Janeiro. Os principais atletas do país foram além e assinaram um manifesto contra o dirigente.

"A gente não aguenta mais, queremos que ele saia de lá. As decisões são sempre unilaterais e falta diálogo com a gente. Os critérios nunca são claros e são decididos pelo próprio presidente. Nós não temos nenhuma voz e não temos nenhum apoio", critica Josué Lucas, presidente da comissão de atletas. Na terça, ele entregou a carta ao Comitê Olímpico do Brasil (COB) e à comissão de atletas do COB.

O Mundial do ano passado, em Miami, é um exemplo da situação. Não é difícil imaginar quão desgastante seja uma grande competição de levantamento de peso, mas os brasileiros que competiram em Miami sequer puderam tomar banho antes de pegar o voo para o Brasil. É que, para economizar, a CBLP comprou passagens para o mesmo dia em que eles competissem, fazendo com que eles realizassem o check-out do hotel antes de irem para o ginásio com mala e tudo. E, para ajudar, cada atleta teve que usar seu próprio uniforme, alguns deles de treino, porque a confederação não deu roupa.

Muito mais do que uma briga por poder, o confronto é pelo direito dos atletas poderem praticar o esporte em uma confederação onde a eleição é realizada apesar de contestação judicial e onde o presidente veta que os melhores do país sejam beneficiados pela Bolsa Pódio. Sétimo do ranking mundial, Fernando Saraiva é um dos que teria esse direito, mas não recebe a verba porque Enrique não assina o documento exigido pelo Ministério do Esporte, como manda a lei.

Reclamações

Fernando Saraiva foi o precursor do movimento, ainda que agora seja apenas espectador. Os conflitos entre a família Saraiva e os Monteiro são antigos. Horário, pai de Fernando, é presidente da Federação Paulista e há anos bate de frente com Enrique e seu pai, David Montero Gomez. David comandou a CBLP até 2008, quando foi retirado do cargo pela Justiça, por improbidade administrativa.

É na Federação Paulista que estão alguns dos principais halterofilistas do país, quase todos no Pinheiros, casos do próprio Fernando (que treina nos EUA), de Roseane Santos (quinta na Olimpíada), Welisson Rosa e os irmãos Mateus e Marco Gregório. Enquanto isso, as outras quatro federações estaduais (Minas, Rio, Rio Grande do Sul e Paraíba) continuaram apoiando Enrique, sendo premiadas por isso. Em 2016, ainda como repórter do Estadão, contei como se deu o corte de Bruna Piloto para que Jaqueline Ferreira, do Rio, fosse convocada.

No ano passado: Fora da convocação do Pan, Fernando Reis Saraiva consegue vaga na Justiça

Agora, de novo a polêmica passa por uma convocação. Enrique diz que os critérios são feitos pela "comissão técnica", formada por ele e por um árbitro colombiano contratado recentemente pela CBLP. Divulgados em cima da hora, os índices para o Campeonato Pan-Americano ficaram mais difíceis para a maioria dos atletas, especialmente Bruna Piloto, mas não nas categorias da cariocas Jaqueline e Liliane Menezes. Ainda que os equipamentos herdados da Rio-2016 estejam no CEFAN (CT da Marinha), a seletiva aconteceu na academia do romeno Dragos Doru Stanica, técnico delas e ex-técnico da seleção, que rompeu com a Marinha.

O boicote

Ainda assim, todos os convocados apareceram para a seletiva, sábado de manhã. Só quem não apareceu foi o presidente da CBLP, que os atletas raramente encontram. Em nome da confederação, estava lá apenas o diretor-técnico, o colombiano Diego German. Os atletas, porém, também são contra a contratação do profissional, que eles afirmam viver na Colômbia – Enrique diz que ele mora em BH e está se mudando para Viçosa. Alegam que há opções melhores no Brasil, como Edmilson Dantas, hoje técnico do Paineiras do Morumby, outro desafeto de Enrique, demitido depois da Rio-2016 e de reclamar do corte de Bruna.

Representante dos atletas, Josué Lucas liderou o boicote. Os competidores, em sua maioria, concordaram em não competir enquanto Enrique não aparecesse para conversar. As promessas de que ele chegaria à tarde comprovaram-se falsas.

Desta vez, Fernando Saraiva não se envolveu. Vindo dos Estados Unidos para a seletiva, optou por não competir em solidariedade com os colegas, mas também não se expressou publicamente – assim como seus colegas não saíram em sua defesa no ano passado, quando Enrique manipulou critérios para que Fernando não pudesse disputar o Pan e o Mundial, direito que o melhor atleta do país só conseguiu na Justiça.

Só duas atletas, dentre as principais do país, se levantaram contra o boicote e insistiam que queriam competir, segundo relatos ouvidos pelo Olhar Olímpico. Exatamente Jaqueline e Liliane, as duas que teriam sido beneficiadas pelos critérios da confederação. Além delas, também teriam demonstrado interesse em participar os atletas das federações aliadas de Enrique: Rafael Fernandes (Minas Gerais), Serafim Veli (Paraná) e Mayara Soares (Paraíba), sendo persuadidos pelo grupo majoritário. Os três assinaram o documento exibido nessa reportagem. Jaqueline e Liliane, não. Enrique alega que os cinco foram coagidos por "um grupo de atletas" do Pinheiros e da Marinha, que são ampla maioria.

Muitos incômodos

A seletiva para o Pan foi só o estopim de uma crise que estava prestes a estourar. Ainda que não tenham se exposto publicamente, os atletas não engoliram as injustiças contra Bruna e Fernando. Nas duas ocasiões, ficou claro que todos estavam numa corda-bamba e que, a qualquer momento, poderiam ser empurrados por quem tem a caneta.

Além disso, a modalidade se apequena ao mesmo tempo em que os resultados internacionais evoluem. No ano passado, tanto Roseane Reis quanto Fernando Saraiva chegaram ao Mundial com possibilidades reais de pódio. Mas a confederação sequer deu uniforme para os brasileiros competirem – cada um usou a roupa que tinha.

O melhor centro de formação do país, na Universidade Federal de Viçosa, onde o próprio Enrique foi atleta, foi praticamente fechado. Sem apoio da confederação, os atletas que seguem treinando no interior de Minas precisam realizar seus treinamentos em uma quadra aberta, a mercê do sol e da chuva.

Enquanto isso, a confederação estaria investindo para que um colombiano se naturalize brasileiro. Trata-se de Whilliam Alexey Alvarado Celis, que inclusive venceu a categoria até 69kg do Campeonato Brasileiro do ano passado competindo por Minas Gerais. O Olhar Olímpico falou com quatro atletas e nenhum deles sabe sequer se Whilliam treina no Brasil.

Além disso, há a reclamação de beneficiamento de uma atleta de Minas Gerais na seletiva para os Jogos Sul-Americanos, restritos aos atletas sub-20. Ela até bateu o índice, mas competiu acima do limite de peso imposto para a categoria.

O que diz o presidente

Enrique atendeu a reportagem por telefone na terça-feira à noite e, inicialmente, fez questão de ressaltar que a eleição dele, que foi questionada na Justiça pela Federação Paulista, como chegou a publicar o Olhar Olímpico, no fim foi considerada legal. A 30.ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte inclusive apontou ter havido má fé por parte dos denunciantes.

Com relação às queixas dos atletas, ele diz estar sempre aberto ao diálogo com os atletas e cita ter estado presente na seletiva sub-17. Segundo ele, seu último encontro com os atletas adultos foi no Mundial de novembro do ano passado, mas que sempre responde quando procurado.

Enrique assegurou que os critérios de convocação são sempre técnicos, hoje feitos por ele e pelo diretor-técnico da confederação. "Há um entendimento avançado por minha parte sobre a parte técnica da modalidade", argumenta.

Questionado especificamente sobre a insatisfação dos principais atletas da modalidade com ele, disse que esse movimento é "específico do grupo do Pinheiros" e defendeu sua gestão, citando a boa avaliação no uso das verbas da Lei Piva e a evolução de resultados nas categorias de base, com medalhas nos Mundiais Sub-17 e Sub-20. "Eu trabalho em prol da modalidade, diretamente em prol de todos os atletas", alegou.

 

Sobre o autor

Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.

Está disponível para críticas, elogios e principalmente sugestões de pautas no demetrio.prado@gmail.com.

Sobre o blog

Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.