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Olhar Olímpico

Torneio sem expressão mostra como é fácil receber R$ 1,6 mi de Ministério

Demétrio Vecchioli

04/10/2017 04h00

Sede do evento de submission em Itatim (Divulgação)

Enquanto o esporte brasileiro vive momento de crise financeira, o Ministério do Esporte deu R$ 1,63 milhão a uma cidadezinha de 15 mil habitantes no interior da Bahia, Itatim, para que ela realizasse uma pequena competição nomeada "Circuito Brasileiro de Lutas Submission – Etapa Nordeste", ainda que não haja (e nunca tenha havido) outra etapa desse "circuito". A competição aconteceu durante três dias em março e reuniu principalmente atletas amadores de jiu-jitsu do interior baiano.

A prefeitura, por sua vez, utilizou todo o recurso em dois contratos. Um, com a ELS Promoções e Realizações em Eventos, que mesmo sediada no número 2320 da Rua Joaquim Oliveira Freitas, em São Paulo, locou de tendas até ar condicionado para a cidade baiana e ofereceu serviços que vão de venda de passagens aéreas a produtos como mochilas e camisetas. O outro, assinado por Elisio Macambira, com a Confederação Brasileira de Lutas Submission (CBLS), sediada absolutamente no mesmo endereço, em uma casa residencial, onde também fica outra empresa dele, a Macam Sports.

Elisio é um velho conhecido deste repórter. Em 2014, então no Estadão, denunciei que o dirigente, que comanda pelo menos outras três federações paulistas de luta, todas com problemas com a Justiça, a de "lutas submission" e uma de MMA, fraudou duas vezes o Bolsa Atleta, para que seus dois filhos fossem premiados por competições das quais não participaram. Competições, essas, organizadas por confederações então presididas por ele – leia aqui e aqui, ou chegue até o fim deste texto. O Ministério do Esporte à época cancelou as bolsas e prometeu investigar o caso. Elisio, porém, continuou agindo livremente.

O convênio de R$ 1,6 milhão foi firmado entre o Ministério do Esporte e a prefeitura de Itatim, que se comprometeu com uma contrapartida de R$ 2 mil, apenas. A cidade é governada, em segundo mandato, pelo delegado civil licenciado Gilmar Pereira Nogueira, o Tingão (PSD). Ainda que o evento seja complexo, apenas três orçamentos foram apresentados ao governo federal. Tanto a ELS quanto as suas duas concorrentes forneceram telefones falsos.

O plano de trabalho, aprovado na íntegra e na sua primeira versão pelo Ministério do Esporte, é uma afronta a todos os princípios da administração pública, como será mostrado em detalhes logo abaixo. Ele defende que, para a competição no interior da Bahia, fossem alugadas estruturas de uma empresa da capital paulista. Além disso, 60 pessoas, entre elas 30 atletas, 20 árbitros e oito monitores, sairiam de São Paulo e ficariam 11 dias na cidade de Feira de Santana, a 90 quilômetros de Itatim, com hospedagem, alimentação e transporte pagos.

O Ministério do Esporte aprovou tudo, mas o evento saiu do papel muito diferente. Os 11 dias seguidos de evento, sendo nove de lutas, acabaram virando três (um sábado e dois domingos). Nenhum atleta de São Paulo competiu (ao menos, nenhum chegou ao pódio, ainda que a competição tenha tido baixo nível técnico), os árbitros que atuaram são todos da Bahia e o número de competidores foi muito abaixo dos 600 prometidos.

Federação Baiana agradece ao seu "corpo de árbitros"

A proposta – Submission, a grosso modo, é o jiu-jitsu sem quimono. Não há no país qualquer federação estadual desta modalidade, exceto a CBLS, que já firmou convênio com o Ministério do Esporte em 2013, para o Sul-Americano da modalidade, organizado em Osasco (SP) e que teve exatamente os mesmos vícios, incluindo a contratação da ELS para realizar todos os serviços possíveis.

Desde então, a entidade não organizava eventos. Ao apresentar seu "calendário anual" na documentação enviada ao Ministério do Esporte, disse realizar de Campeonato Paulista a Mundial. Um total de oito eventos anuais, no mínimo, que uma rápida busca no Google mostra que nunca existiram. Mesmo assim, o Ministério do Esporte, que, afinal, é quem comanda o esporte no país, acreditou sem contestar.

Para justificar os itens contratados junto à ELS, a prefeitura, argumenta que eles "são de praxe" nos eventos da CBLS. Entre esses itens, a viagem de 60 pessoas, que sairiam de São Paulo em uma quinta-feira e ficariam na Bahia por 11 dias, dois a mais do que a suposta duração do torneio.

Ainda que mesmo grandes competições de lutas como os Campeonatos Mundiais de Jiu-Jitsu, Judô, Karatê e Taekwondo tenham as disputas de uma mesma categoria em único dia, o governo aceitou que os mesmos competidores lutassem durante nove dias. Vale ressaltar que os eventos de esportes amadores costumam ocorrer em finais de semana, quando os trabalhadores estão de folga. O Ministério do Esporte, claro, sabe disso, mas fez vista grossa.

Para permitir essa mega-estrutura para 60 pessoas, sempre porque é "de praxe", a prefeitura teve aprovado um orçamento de R$ 43 mil para passagens aéreas, R$ 70 mil para locação de ônibus, outros R$ 66 mil para locar cinco vans, R$ 62 mil de hospedagem e mais de R$ 207 mil para mais de 9 mil refeições. Tudo contratado junto à ELS.

Prometendo convocar os melhores atletas para a seleção brasileira de submission (que não existe) e oferecendo pontuação no ranking brasileiro (que também não existe), a CBLS considerou que participariam da competição 600 atletas. Cada um deles ganharia uma camiseta (R$ 20), shorts (R$ 35), sandálias (R$ 20), mochila (R$ 60), protetores bucais (R$ 30) e medalhas (de R$ 15 a R$ 20). Um pacote que custaria R$ 180 por atleta. O campeão da cada categoria levaria para casa ainda um troféu de R$ 150 e que, fotografado, parece valer muito menos do que isso.

Orçamentos frios – Apenas três empresas, todas teoricamente registradas em São Paulo, foram cotadas para realizar o evento. Uma delas, a ELS, que já mudou seu nome fantasia para Bianca Eventos e, funcionando desde 2007, não emitiu mais do que 100 notas fiscais – a relativa a este evento é a de número 95.

Também apresentaram orçamentos, absolutamente idênticos ao da ELS, mudando apenas os valores, a All Party Agência de Eventos e a Comunixy Agência Digital. A reportagem ligou para os telefones que constam nos orçamentos. O primeiro é de uma casa de família e o segundo de uma empresa de contabilidade que garante não atender à Comunixy, uma empresa que cria sites e faz marketing digital.

Como teve o preço mais baixo em todos os 52 itens, a ELS foi a contratada para prestar todos os serviços. Por um só contrato, assinado por Katia Regiane dos Santos Fernandes, recebeu R$ 1,539 milhão.

O restante do dinheiro – R$ 101 mil – foi pago à Confederação Brasileira de Lutas Submission, em contrato assinado pelo próprio Elisio. Ali, aparece que, como a CBLS detém "exclusividade na prestação de serviços de arbitragem e palestras" no evento, não haveria necessidade de licitação. O Ministério do Esporte novamente não contestou.

Na prática – A competição foi organizada pela Federação Baiana de Jiu-Jitsu e MMA, como mostram diversas postagens nas redes sociais, que tinham o telefone pessoal do presidente da entidade, o ex-policial federal Evandro Nascimento, como o organizador. No início, a divulgação prometia quatro dias de eventos, mas um deles, o segundo sábado, acabou excluído do calendário. A mudança de datas precisa ser aprovada previamente pelo Ministério do Esporte, o que não ocorreu – a pasta só autorizou seu adiamento em uma semana.

Se no início o evento era "só para convidados", depois ele passou a ser "só para filiados à FBJJMMA" e, no fim, quem se inscreveu até no dia do evento pôde participar. O número de categorias também foi variando, partindo de 24 e terminando com no máximo 12 – três categorias de peso, divididas em "feminino", "faixa branca", "azul e roxa" e "marrom e preta". O plano de trabalho previa 70 troféus de campeões.

As 625 medalhas, sendo 400 de participação e 225 para os que subissem ao pódio também encalharam. Em imagem publicada no Facebook pelo próprio prefeito da cidade, crianças da plateia fizeram fila para serem contempladas. As fotografias do evento publicadas por diversos perfis, da FBJJMMA à prefeitura, passando por atletas, não mostram mais do que oito pódios sendo realizados, todos eles masculinos.

De fato, a divulgação do evento sempre prometeu um kit com medalha, shorts, camiseta e protetor bucal. Apesar dos R$ 37 mil liberados para compra de mochilas, o item nunca foi citado pelos organizadores. Na maioria absoluta das lutas transmitidas na página da FBJJMMA no Facebook, os atletas não usam os materiais prometidos, ainda alguns deles usem as camisetas e os shorts da competição.

Crianças recebendo medalhas

Não bate – Esses não são os únicos números absurdos de evento. Ainda que tenha sido disputado no ginásio de uma escola de uma cidade de 15 mil habitantes, o evento contou, em teoria, com 1,5 quilômetros de gradis, que custaram R$ 85 mil aos cofres públicos. O ginásio é aberto, como poderia ser verificado pelo Ministério do Esporte com uma busca no Google, mas mesmo assim o orçamento previa 10 aparelhos de ar-condicionado alugados ao custo de R$ 35 mil – o valor equivale à compra dos mesmos.

No total, só as estruturas físicas do evento foram orçadas em R$ 874 mil, ainda que muitos dos itens não apareçam em nenhum dos vídeos disponíveis na internet, seja no Instagram da FBJJMMA, no Facebook da mesma entidade, que transmitiu boa parte da competição ao vivo, ou no "documentário" produzido pelo mesmo jornalista que abastece o site da CBLS – quem quiser assistir, pode clicar aqui. 

A transmissão online mostrou que, quando um atleta se machucou, ele foi atendido por duas pessoas à paisana, ainda que tenham sido contratados, em teoria, três fisioterapeutas, além de uma ambulância com médico e enfermeiro. Nas imagens, não aparecem as 160 cadeiras e 40 mesas prometidas, nem as "placas de prisma" que custariam quase R$ 100 mil.

Nos vídeos, atuam cinco árbitros, apenas. Todos do quadro da FBJJMMA, ainda que o governo federal tenha desembolsado mais de R$ 200 mil só para que 20 árbitros fossem de São Paulo à Bahia e ficassem lá por 11 dias. Cada um deles ainda receberia R$ 3,2 mil em diárias, via CBLS. Fotos de eventos anteriores e posteriores da FBJJMMA deixam claro que eles são do estado.

Nos documentos apresentados ao Ministério do Esporte, a CBLS fornece uma lista de árbitros que atuariam na competição. Todos com absolutamente o mesmo currículo: "Ao longo da sua carreira conquistou inúmeros títulos, tais como campeão brasileiro 2 vezes, campeão europeu 2014, campeão da word abu dabhi 2013/2014, campeão rio internacional open 2 vezes, campeão brasileiro nogi 2 vezes e muito mais…". Todos são lutadores da academia Cícero Costha de Jiu-Jitsu, assim como boa parte dos 30 lutadores que viajariam de São Paulo para ficar 11 dias na Bahia. Boa parte dos nomes, aliás, aparece nas duas listas.

Macambira, de preto, com o prefeito de Itatim

Elisio Macambira – Aqui, um rápido depoimento pessoal: as ações de Macambira sempre me intrigaram porque ele, como nenhum outro dirigente esportivo, não se preocupa em encobrir as ações que, digamos, fogem do que é correto. Abre uma entidade nova sempre que a anterior fica proibida de receber recursos públicos. Foi assim com a FEPALO (Federação Paulista de Luta Olímpica), que foi condenada a devolver R$ 109 mil ao governo do Estado de São Paulo por um convênio fraudulento em 2008. Depois disso, em três semanas, em 2011, ele abriu a FOGRESP, FLAESP e a CBMMA. E, em 2014, ainda comandava a Federação Paulista de Bujutsu.

Exceto a FEPALO, que é a entidade reconhecida pela Confederação Brasileira de Wrestling (CBW) em São Paulo e já não está mais nas mãos de Macambira, todas as demais existem com a única finalidade de firmarem convênios com o poder público. No passado, eu tive a oportunidade de ler alguns deles, que hoje só são acessíveis por Lei de Acesso à Informação, e o que vi foi exatamente as mesmas práticas do convênio tratado nesta reportagem.

Com tantas entidades à disposição, ele coloca uma para afirmar a legalidade da outra. Neste convênio, por exemplo, a FOGRESP, a CBMMA e a FLAESP apresentam documentos para assegurar que os preços praticados pela CBLS são compatíveis com o mercado. Um desses documentos é assinado pelo filho de Macambira. Outro, por Bruno Omori, poderoso Associação Brasileira da Indústria de Hotéis do Estado de São Paulo e aliado de longa data de Macambira, com quem diz não falar "há uns quatro anos".

Em 2014, Elisio conseguiu que a CBMMA fosse reconhecida como entidade responsável pelo MMA no Brasil, apesar de protestos de quem de fato trabalha com a modalidade. Assim, ele ganhou o direito de indicar atletas para o Bolsa Atleta e o fez informando ao Ministério do Esporte sobre a realização de um "Campeonato Sul-Americano de MMA" no interior do Rio Grande do Sul.

A competição em Gramado na verdade chamava-se Dragon Fight e só teve alguns poucos atletas gaúchos. Na documentação enviada ao Ministério do Esporte, porém, constava o nome de 26 estrangeiros. Chequei o nome de cada um deles no Google. Nenhum existia. Eram nomes forjados somando sobrenomes tradicionais na América Latina. Coisa de amador, que o Ministério do Esporte aceitou sem contestar.

Ao forjar essa documentação, Elisio conseguiu que um dos seus filhos, Jefferson Macambira, fosse incluído na relação do Bolsa Atleta Internacional em 2014. À época, falei com diversos atletas que estiveram na competição e nenhum deles nunca havia ouvido falar de Jefferson.

Depois, ainda em 2014, apontei outra fraude de Elisio no Bolsa Atleta. Cristian Meneth Macambira, também filho do dirigente, foi contemplado pelo Sul-Americano de Submission, competição à qual ele não disputou. Uma fotografia de Elisio com os três atletas foram ao pódio na categoria na qual Cristian foi indicado deixou clara a fraude.

Antes de a prefeitura de Itatim entrar com o pedido de convênio no fim do ano passado, Elisio deixou a presidência da CBLS, ainda que ele continue assinando contratos pela entidade. Na ata da eleição, aparece que a entidade ficou sem presidente entre 2012 e 2016, tendo eleito agora José Carlos Santos, que é residente no mesmo endereço onde está registrada a FEPALO.

O que eles falam – Macambira não quis falar com a reportagem. Ele não atendeu as ligações feitas do meu número celular e me bloqueou no Whatsapp depois que solicitei uma entrevista. Quando liguei de outro número, me atendeu, ouviu meu nome e desligou. Depois, não voltou a atender.

O presidente da FBJJMMA fez questão de ressaltar diversas vezes que é ex-polícia federal e disse que não participou da organização do evento, ainda que seu telefone apareça em todos os materiais de divulgação como organizador. Sobre o tamanho da competição, Evandro garantiu que ela "deve ter durado" 11 dias, "se é isso que fala no documento" e, com relação a outras informações, disse que a reportagem deveria procurar o Ministério do Esporte.

O Ministério do Esporte, por sua vez, não respondeu oficialmente se enviou fiscalização para o evento. O blog apurou, porém, que dois técnicos passaram quatro dias em Itatim. O relatório produzido não está disponível para o público no sistema de convênios do governo federal.

Sobre o convênio, via assessoria de imprensa, o Ministério disse apenas que o mesmo "está em fase de análise de prestação de contas". Com relação às fraudes anteriores de Macambira, informou que abriu processo interno para apuração das denúncias, mas não revelou o que descobriu.

A assessoria de imprensa da prefeitura de Itatim garantiu que tudo foi realizado dentro da lei. O prefeito Tingão não aceitou falar com a reportagem. Seu assessor prometeu retornar os contatos para mais esclarecimentos, mas depois deixou de atender as ligações do blog.

No telefone da ELS que consta no orçamento enviado ao Ministério do Esporte, ninguém atendeu. O número está registrado em nome de uma concessionária de carros de alto padrão no Jardim Europa.

A reportagem também não conseguiu contato com a Comunixy Agência Digital, enquanto que, na All Party, após saber do teor da reportagem, a secretária se negou a informar a quem pertence a empresa e se o orçamento de fato foi passado pela All Party. A prometida ligação do departamento jurídico da empresa não aconteceu.

Já na academia de Cícero Costha, de onde deveriam sair os árbitros e os lutadores que iriam de São Paulo à Bahia, o proprietário não foi encontrado. Um representante da academia, que se apresentou como Luan, confirmou que os nomes que constam nos orçamentos são de alunos de Cícero, mas disse não saber se eles de fato viajaram à Bahia. "Talvez sim", alegou.

Sobre o autor

Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.

Está disponível para críticas, elogios e principalmente sugestões de pautas no demetrio.prado@gmail.com.

Sobre o blog

Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.