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Olhar Olímpico

ABCD demora a autorizar tratamentos, revolta médicos e desfalca clubes

Demétrio Vecchioli

13/09/2017 04h00

Imagine um jogador doente, precisando tomar um remédio para melhorar e jogar uma partida decisiva no fim de semana. Mas o remédio está na lista de proibidos e o médico do clube precisa de uma autorização especial para receitá-lo. A resposta até chega, mas 15 dias depois, quando o campeonato já acabou. O cenário parece absurdo, mas é o encontrado no futebol brasileiro desde maio. Por causa dele, a Confederação Brasileira de Futebol e a Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD) estão em pé de guerra.

Até o ano passado, era a CBF que comandava a Comissão de Autorização de Uso Terapêutico (AUT). Entre os médicos enviarem a solicitação do AUT e receberem a resposta de volta, passava-se não mais do que 24 horas. A ABCD diz que "tem como prática enviar posicionamento em prazo que varia de 48 a 72h", mas a reportagem falou com três médicos de clubes da Série A e nenhum deles nunca recebeu resposta antes de uma semana. Há relatos de quase um mês de demora entre a solicitação e a resposta.

Um dos clubes prejudicados é o São Paulo. De acordo com o médico José Sanchez, durante o Brasileirão ele solicitou dois AUT's, ambos para uso de corticoide. A ideia era fazer a chamada "infiltração" para aliviar a dor e permitir que os atletas pudessem realizar exercícios de força durante a recuperação de lesões. "A gente solicita o corticoide quando já se esgotaram os anti-inflamatórios não-hormonais", explica. Nos dois casos, porém, as respostas levaram mais de 15 dias para chegar. São duas semanas sem poder definir para que caminho levar o tratamento.

"Eu preciso da resposta para poder medicar o atleta. Quando você tá diante de uma situação dessa, você fica numa situação difícil. Você tem que responder à comissão técnica, à direção. Eu usei todas as possibilidades e não consegui o resultado. Você tem situações que poderiam abreviar a recuperação em algumas semanas, mas não consegue porque sequer tem a resposta", explica Sanchez, sem dizer quais foram os atletas prejudicados – a reportagem apurou que um deles é o goleiro Denis.

Pelo relato de Sanchez, em um dos casos, a resposta chegou depois de 15 dias, mas com data retroativa a uma semana antes. Ou seja: a decisão do presidente da comissão, o carioca José Kawazoe Lazzoli, havia sido tomada havia uma semana, mas ficou travada na secretaria da ABCD. Além de Kawazoe, nos casos do futebol, opinam outros três médicos: o gaúcho Ivan Pacheco, o paulista Wagner Castropil e o Fernando Solera, que representa da CBF.

Na segunda-feira, Sanchez e outros médicos dos clubes paulistas se reuniram na sede da Federação Paulista de Futebol (FPF) e o problema dos AUT's esteve no cerne da discussão. O Corinthians, por exemplo, também teve experiências ruins desde que o controle do processo passou à ABCD.

"Está demorando muito. Eles estão com um sistema que está até prejudicando os clubes. Futebol é para ontem. Tem competição domingo, quarta, domingo. Você pede a AUT demora dias e dias. Estou há 40 anos no futebol e posso dizer que o sistema do futebol não tá funcionando bem", critica o médico Joaquim Grava, que dá um exemplo. "Você tem um edema de glote (reação alérgica), vai para o hospital, o hospital te dá um corticoide para você não morrer. Isso quatro dias antes do jogo. Aí a ABCD leva 15 dias para responder e você não pode jogar. Quer dizer que você se dopou no hospital?"

No Corinthians, um caso foi público: o do volante Marciel. Ele foi a um dermatologista, que aplicou um remédio para o cabelo que é proibido pelo Código Mundial Antidoping. O Corinthians solicitou uma AUT, mas a resposta levou pelo menos 10 dias para chegar, afirmando que o volante não poderia jogar até 29 de setembro. Neste meio tempo, o clube recebeu a visita da ABCD para exames surpresa.

"Entramos em contato com a ABCD para saber o que tinha dado no resultado do Marciel, e a resposta deles foi seca: não podemos revelar. E acabou.  Nós chegamos na seguinte conclusão: se até agora não deram a resposta, se ele tivesse pego no exame, ele já estaria suspenso. Então colocamos ele para jogar", conta Grava.

Desfalques – Victor Baitelli, médico do Vasco, é outro que topou falar com o blog sobre a situação e também relatou um cenário preocupante. "Quando era presidido pela CBF, a resposta era em no máximo 24 horas. A resposta nem precisa ser positiva, mas é para a gente se programar, dizer para o técnico se vai jogar ou não, avisar para não poder contar com o atleta. Mesmo se você ligar na ABCD, eles dizem que não adianta ficar ligando", reclama.

Ele também não quis citar os jogadores envolvidos, mas contou que fez duas solicitações de AUT's durante o Campeonato Brasileiro e que ambas as respostas levaram mais de 10 dias para chegar. "Sete dias num clube de futebol já é muito tempo. Isso claro que causou desfalques. O atleta continua com dor e você não pode fazer a medicação. O protocolo deles mudou completamente."

Pelo código antidoping, a ABCD tem até 30 dias para responder sobre os AUT's e tem cumprido esse prazo. Mas a CBF e os médicos dos clubes brasileiros têm reclamado que o futebol precisa de um atendimento diferente. "Futebol não é esporte olímpico. No esporte olímpico o cara ganha a medalha e vai competir de novo daqui a sei lá quantos meses. Futebol é quarta-domingo, quarta-domingo", lembra Joaquim Grava. "No judô o cara pode pedir a AUT hoje e esperar um mês porque ele só vai competir em dezembro. No futebol, não",  reforça Sanchez.

A CBF já levou a reclamação ao ministro Leonardo Picciani, que só esta semana nomeou um novo presidente para a ABCD: o antigo técnico da seleção brasileira de handebol Luis Celso Giacomini.

"A gente está tentando colaborar ao máximo. Não que a gente queria uma situação diferencial, mas queremos que a ABCD tenha alguém que está entenda as necessidades do futebol", reclama Jorge Pagura, chefe do setor médico da CBF.

Membro do Conselho Federal de Medicina, ele tem batido de frente com a ABCD também porque o setor de gestão de resultados é comandado por duas advogadas e não por um médico. No entender dele e do CFM, apenas médicos poderiam receber prontuários médicos de atletas para avaliar resultados analíticos adversos – como quando o exame de Ederson, do Flamengo, deu positivo e os médicos do clube carioca identificaram sintomas de câncer.

Questionado a respeito, o Ministério do Esporte, responsável pela ABCD, não informou quantos médicos trabalham na entidade. A pasta disse ainda que "a ABCD atua estritamente em acordo com o Código Mundial Antidopagem e está satisfeita com os progressos feitos em conjunto com a CBF no combate ao doping no esporte".

Este ano, a ABCD passou a realizar exames surpresas nos elencos da Série A do Brasileirão. Entre os clubes já visitados estão o São Paulo e o Corinthians, que reclamou que os 30 testes foram feitos de uma vez só, atrapalhando o planejamento de treinos daquele dia. Já a CBF é recordista mundial em exames antidoping, realizando mais de 6 mil por temporada, sempre após os jogos.

 

Sobre o autor

Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.

Está disponível para críticas, elogios e principalmente sugestões de pautas no demetrio.prado@gmail.com.

Sobre o blog

Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.