Topo

Olhar Olímpico

Didático e realista, documentário choca ao detalhar doping russo

Demétrio Vecchioli

05/09/2017 04h00

(Divulgação)

Este texto contém spoilers, mas não muitos.

Bryan Fogel está no aeroporto de Los Angeles, mas não sabe se seu novo amigo, Grigory Rodchenkov, irá chegar são e salvo aos Estados Unidos. A cena do encontro entre os dois personagens do documentário Icarus, diferente de outras tantas no cinema, mostra a real tensão em torno da incerteza sobre o destino do ameaçado cientista russo. O que aconteceria a partir dali mudaria a história do esporte.

Rodchenkov, na verdade, já havia alterado o rumo das coisas. Mas, até então, pouca gente sabia disso, ainda que a comunidade internacional tivesse indícios para fazer essa acusação. Foi o cientista que comandou, como ele revelaria depois, o complexo esquema do esporte russo para burlar o controle antidoping do qual o próprio Rodchenkov era o chefe, como responsável pelo laboratório de análises.

O grande mérito de Icarus, comprado por cerca de US$ 5 milhões pelo Netflix (um dos mais caros da história), é retratar com realismo os bastidores do escândalo a partir da visão do seu maior pivô, Rodchenkov, ao mesmo tempo em que consegue ser didático ao explicar como se dava a fraude que fez da Rússia campeã no quadro de medalhas dos Jogos Olímpicos de Sochi, em 2014. E que existia desde muito antes de Rodchenkov assumir o cargo.

O que inicialmente é um lance de sorte para Bryan Fogel acaba se tornando um escândalo mundial. A ideia do documentarista era um enredo semelhante ao do premiado Super Size Me, no qual Morgan Spurlock só se alimenta no McDonald's durante 30 dias. No caso de Fogel, seu alimento seria o doping, para participar de uma competição amadora de ciclismo.

Mas a sorte conspira a favor de Fogel, que contacta Rodchenkov a partir de uma recomendação para que ele o ajudasse cientificamente a burlar o doping. O cineasta acaba se envolvendo com o homem que fazia isso de uma forma muito menos científica: trocando frascos de urina "suja" por urina "limpa" dos mesmos atletas, previamente armazenadas com esse fim.

Tudo isso é contado tim-tim por tim-tim pelo próprio Rodchenkov, que, entre a gravação da maior parte do documentário e o seu lançamento, concedeu entrevista semelhante ao The New York Times e foi a principal fonte de informações para o "relatório McLaren", de um investigador independente canadense a pedido da Agência Mundial Antidoping (Wada). Foi a partir desse relatório que o atletismo russo (e só o atletismo) foi impedido de participar da Olimpíada do Rio, numa punição que continua parecendo branda demais.

Quem acompanhou de perto o noticiário a respeito das investigações da Wada tinha conhecimento da maior parte das denúncias feitas por Rodchenkov que aparecem no documentário. Mas há de se considerar que, na vida real, elas foram sendo divulgadas/descobertas ao longo de quase dois anos, período entre a exibição do documentário da tevê alemã ARD e da publicação da versão final do relatório McLaren. Os fatos novos vinham em doses homeopáticas.

Em Icarus, todas essas informações são passadas ao público em uma hora, de forma compilada e, mesmo assim, detalhada. É um soco na cara, porque mostra quão incontestáveis são as provas da existência de um elaborado esquema para burlar as regras antidoping na Rússia. Ao mesmo tempo que não deixa dúvidas sobre como o governo russo lida com o problema: 'sumindo' quem quer que tenha informações privilegiadas que possam comprometê-lo.

A cena citada no início deste texto é importante porque é o documentário de Fogel que permite a Rodchenkov fugir da Rússia, salvar sua vida e, nos Estados Unidos, começar a contar o que sabe. Hoje ele vive sob proteção, em local desconhecido. Mas a sensação que fica é que, se ressurgir, ele ainda tem muito o que revelar. Como todo bom filme, um bom argumento para uma continuação.

Sobre o autor

Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.

Está disponível para críticas, elogios e principalmente sugestões de pautas no demetrio.prado@gmail.com.

Sobre o blog

Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.