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Olhar Olímpico

Em crise técnica e de identidade, atletismo se vê carente de ídolos após fim da 'era Bolt'

Demétrio Vecchioli

14/08/2017 04h00

(Jewel Samad/AFP)

Usain Bolt foi o maior expoente de uma fase de ouro do atletismo, que parece ter chegado ao fim. O fim da carreira de Mo Farah nas pistas e o declínio de nomes como Allyson Felix e Renaud Lavillenie deixam a modalidade carentes de referências em um momento de crise técnica. O Mundial de Londres foi, de longe, o mais fraco desde pelo menos de o Osaka, em 2007, exatamente quando Bolt surgiu.

Nas provas de velocidade, os tempos foram decepcionantes. Na prova masculina de 100m, a mais aguardada do programa, o número de marcas abaixo de 10 segundos foi a menor desde o Mundial de Osaka, quando Bolt surgiu. Entre as mulheres, problema semelhante. Nos 200m, o tempo feito pela campeã em Londres, Dafne Schippers, a deixaria em quinto em Pequim, no Mundial passado.

Exceto a marcha atlética 50km feminina, que teve só sete participantes e foi disputada internacionalmente pela primeira vez, depois de ser instituída este ano, nenhum recorde mundial foi quebrado no Mundial, algo que não acontecia desde 2007.

A comparação com o evento de 2015, em Pequim, deixa claro o problema. Na China, Ashton Eaton fez a melhor marca da história no decatlo e cinco recordes do campeonato foram batidos. Além disso, 13 novos recordes continentais foram registrados. Este ano, em Londres, foram dois recordes do campeonato e sete novas marcas regionais foram estabelecidas – sempre excluindo o 50km feminino, que teve sua primeira disputa internacional.

O assunto é tabu, mas não é difícil relacionar esse declínio nos resultados ao maior rigor da IAAF com relação ao doping. Uma jornalista brasileiro chegou a levantar o tema na entrevista coletiva de Usain Bolt e Justin Gatlin após a final dos 100m e foi criticada por ambos, que acabaram por fugir de entrar na discussão. Só novas técnicas antidoping, capazes de avançar na análise de amostras antigas, é que dirão se houve de fato mudanças de comportamento dos atletas.

Referências – Diferente da natação, onde um atleta pode ganhar sete medalhas de ouro em um mesmo Mundial (vide o fenômeno Caeleb Dressel), no atletismo a grande maioria dos competidores participa de apenas uma prova. Isso dificulta a comparação entre atletas de provas diferentes e acaba marginalizando muita gente boa. Destaca-se quem consegue resultados extraordinários, que andam em falta. Só a final dos 3.000m com obstáculos e as provas de marcha atlética entrarão para a história pelo nível altíssimo na qual foram disputadas.

E a consequência disso é que o Mundial chega ao fim com poucos atletas capazes de se manterem como estrelas até sua próxima edição a ser realizado em Doha (Catar), em 2019. Faltam nomes que promovam o esporte e os eventos nos quais recebem bolsa para competir, fazendo valer o que é investido neles. Atletas que são referência das provas na quais competem – como Isinbayeva e Lavillenie no salto com vara, Rudisha nos 800m, Eaton no decatlo, Allyson Felix nos 200m e Caterine Ibargüen no salto triplo, todos derrotados ou ausentes no Mundial.

Para virar referência, um atleta precisa ou de resultados formidáveis, ou se manter soberano por longo tempo – se conseguir as duas coisas ao mesmo tempo, como Bolt e Mo Farah, melhor. Encerrado o Mundial, a sensação é de que poucos atletas têm currículo para aparecer num patamar acima. Com longo reinado, só a polonesa Anita Wlodarczyk, do martelo, e o triplista Christian Taylor, norte-americano, que ainda precisa dar o "passo a mais" e quebrar o recorde mundial. Nenhum dos dois, porém, é conhecido do grande público.

A expectativa geral era de que Wayde van Niekerk pudesse cumprir esse papel. O sul-africano, que bateu o recorde mundial dos 400m rasos na Rio-2016, chegou a Londres credenciado a ser o "novo Bolt". Até venceu os 400m, conquistando o bicampeonato mundial, mas sem encantar. Nos 200m, beliscou o bronze e não conseguiu ser o segundo homem a fazer a dobradinha 200/400 no alto do pódio. Quem esperava que ele fosse ser a nova cara do atletismo se decepcionou.

É claro, há alguns candidatos. Uma delas, a holandesa Dafne Schippers, bicampeã mundial dos 200m. Outra, a belga Nafissatou Thiam, campeã olímpica e mundial do atletismo, que fez o terceiro melhor resultado da história no heptatlo.

Sobre o autor

Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.

Está disponível para críticas, elogios e principalmente sugestões de pautas no demetrio.prado@gmail.com.

Sobre o blog

Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.