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Olhar Olímpico

Refugiada dormiu na estação de trem e hoje compete protegida por tanques em Budapeste

Demétrio Vecchioli

27/07/2017 04h00

(AFP PHOTO / Martin BUREAU)

Há dois anos, a Hungria era um dos epicentros da crise humanitária vivida por imigrantes que fugiam da guerra, especialmente na Síria, e queriam chegar aos países mais ricos da Europa, como a Alemanha. Entre as centenas de milhares de pessoas que cruzaram Budapeste, rejeitadas pela enorme maioria da população local, estava a jovem Yusra Mardini. Foram sete noites dormidas no chão da estação de trem de Budapeste, cidade na qual ela está de volta, agora como atleta inscrita no Mundial de Natação. Enquanto ela nada, do lado de fora tanques de guerra protegem a entrada da Duna Arena e algumas das principais ruas da cidade, numa medida contra os refugiados, tratados como terroristas pelo governo, que construiu muros nas fronteiras para barrá-los.

Mardini, de 19 anos, está no Mundial de Budapeste como uma das duas representantes da equipe de refugiados, repetindo um papel simbólico que ela já havia cumprido na Olimpíada do Rio. Em abril, ela foi nomeada Embaixadora da Boa Vontade do ACNUR, a Agência da ONU para os Refugiados. Na Assembleia Geral da ONU do ano passado, defendeu o direito dos refugiados ao acesso a abrigos seguros, educação, meios de subsistência e oportunidades de capacitação.

Tudo que ela não teve na sua primeira passagem por Budapeste. "Eu prometi que eu voltaria para mostrar que eu não era apenas uma refugiada, mas alguém especial", afirmou a síria, relembrando quando esteve na capital da Hungria, em 2015, junto com a irmã Sara.

A parte da história sobre ela ter precisado nadar para fazer a travessia entre Turquia e Grécia, durante três horas e meia no Mediterrâneo, puxando o barco em que a família estava, já ficou bastante conhecida durante a Olimpíada do Rio. Mas a passagem por Budapeste não foi menos sofrida e foi relembrada agora que Mardini voltou à cidade.

"A primeira vez que ouvi que eu voltaria para Budapeste, minha primeira reação foi: 'Não, eu tenho medo'. Depois de um tempo, eu fiquei feliz. Eu prometi para mim mesmo que eu voltaria para ter uma outra imagem. E agora eu percebi que eu tive uma visão errada das pessoas daqui. Agora todos querem me ajudar. Muita gente está nos ajudando, tem sido incrível", disse, política como deve ser uma embaixadora.

A realidade, porém, é que a Hungria é um dos países que mais tem mostrado rejeição aos refugiados. Primeiro-ministro desde 2010, Viktor Orbán é um expoente dessa política e, no ano passado, investiu pesado em um referendo que desaprovasse um sistema de realocação de refugiados entre os países da União Européia. Nas urnas, 98% dos eleitores rejeitaram a cota, como ele queria, mas o referendo não foi válido porque menos de 50% dos húngaros aptos apareceram para votar – cerca de 43% deles, apenas.

Tanque na entrada da Duna Arena

O que pôde fazer para impedir a entrada de refugiados no país, Orbán fez. Ainda em 2015, construiu muros nas fronteiras com a Sérvia e a Croácia, ao sul. Este ano, concluiu um segundo muro, de 150 quilômetros, também na divisa com a Sérvia. "A imigração é o cavalo de Tróia do terrorismo", chegou a dizer o primeiro-ministro, que, junto com o governo polonês, tem o discurso mais nacionalista da Europa atual.

Isso foi sentido na pele por Mardini, que passou noites dormindo no chão da principal estação de trem da cidade, a Keleti, de onde partem os trens que levam à Alemanha, passando antes pela República Checa. "Tivemos alguns problemas com a polícia, foi muito duro para os refugiados", apontou, afirmando acreditar que a reação ruim da maior parte dos húngaros para com os refugiados era motivada por medo.

Na mesma época que Mardini passava por Budapeste com direção a Berlim, onde hoje vive como refugiada, uma jornalista húngara era flagrada chutando refugiados que cruzavam a fronteira com a Sérvia. O caso ganhou repercussão internacional e virou um exemplo não só de como a maior parte dos húngaros tratava as caravanas vindas de países como Síria, Líbano e Afeganistão, mas de como muitos europeus pensavam e agiam.

Na Hungria, esse discurso nacionalista é ainda mais forte e se reforçou com os recentes atentados terroristas em Berlim e em Londres. Em ambos os casos, o primeiro-ministro foi à mídia para reforçar seu discurso anti-imigratório, relacionando os atentados à influência muçulmana na Europa.

E foi exatamente após o atentado em Berlim, em dezembro do ano passado, que os húngaros passaram a conviver com tanques de guerra nas ruas. Eles não estão nas zonas turísticas, lotadas de jovens neste verão, mas pode ser vistos no entorno das estruturas que recebem o Mundial de Esportes Aquáticos, como a Duna Arena e a Margareth Island, assim como um número considerável de membros do exército fortemente armados. Ao menos aqui, Mardini está relativamente protegida.

Sobre o autor

Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.

Está disponível para críticas, elogios e principalmente sugestões de pautas no demetrio.prado@gmail.com.

Sobre o blog

Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.