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Olhar Olímpico

Dez anos após Pan, Rebeca diz: 'não é qualquer um que aguentaria o que eu passei'

Demétrio Vecchioli

20/07/2017 04h00

Foto: Arquivo Pessoal

Rebeca Gusmão era uma jovem de 22 anos quando o mundo caiu sobre sua cabeça. Primeiro, o espanto do grande público ao vê-la musculosa, com o corpo masculinizado, ganhando duas medalhas de ouro nos Jogos Pan-Americanos do Rio. Depois, as medalhas retiradas por uma acusação de doping que ela até hoje nega. A partir dali, sua vida se tornaria um inferno, a ponto de Receba tentar o suicídio. Dez anos depois, a ex-nadadora finalmente se sente novamente feliz. Absorveu a raiva que por tantos anos a consumiu e conseguiu, enfim, seguir em frente.

Ela já era uma nadadora conhecida quando chegou ao Pan de 2007. Fenômeno da natação brasileira, chegou a seleção aos 14 anos, para nadar (e ganhar o bronze) no revezamento 4x100m livre no Pan de Winnipeg, em 1999. Ela ainda repetiria o resultado no Pan de Santo Domingo, em 2003, e seria tratada como a "musa da natação" na Olimpíada de Atenas, em 2004, antes do fatídico Pan do Rio, há dez anos.

"O Pan serviu para a imprensa meio que apresentar os atletas à comunidade brasileira. Então quem me conhecia sabia que meu resultado não foi uma coisa absurda. Quem não me conhecia achava que eu estava fazendo uma coisa inimaginável. Meu resultado não foi o que eu esperava, tinha treinado para nadar para tempos melhores, mas o fato de conseguir quatro medalhas foi algo muito bom", avalia.

No Parque Aquático Maria Lenk, Rebeca bateu o recorde sul-americano dos 100m livre (55s17) e dos Jogos Pan-Americanos nos 50m (25s05), além de se tornar a primeira nadadora brasileira a ganhar ouro em uma edição do Pan. Tudo isso sob a desconfiança do meio aquático, que desde 2006 já comentava sobre o "físico avantajado" de Rebeca, que inclusive passou a ser tratada pelo apelido de "Gigante".

"As pessoas têm um preconceito muito forte, principalmente o brasileiro. Em 2004, para Atenas, eu pesava 75kg. Até o Pan, eu ganhei só 6 quilos de massa. Mas para uma mulher ganhar aquilo era: 'nossa…'. Quem me viu achou que eu estava muito forte, mas quem me conhecia sabia que eu era assim. Hoje eu peso 80kg também, e tenho ainda menos gordura. Passei por todas as fases. Se eu quiser ficar com 60kg eu fico e se eu quiser ficar com 90kg eu fico também. Tenho consciência da genética que eu tenho", conta.

 

Doping – Só que a Federação Internacional de Natação (Fina) não entendeu aquele corpanzil todo como algo natural. Em 2006, a entidade já havia notado níveis elevados de testosterona na urina da nadadora, o que fez com que, durante o Pan, ela fosse testada dentro e fora da competição.

Os exames feitos pela Wada (Agência Mundial Antidoping)  não só indicaram novamente níveis altos de testosterona, como também observaram que as amostras colhidas eram de pessoas diferentes. Considerando que Rebeca teria sido responsável por burlar o sistema, a Fina determinou a suspensão da nadadora por toda a vida em 2008, punição confirmada depois pela Corte Arbitral do Esporte (CAS) no fim de 2009.

"Eu acho que o que fizeram aquela época foi um absurdo. Mas eu sempre soube que as coisas aos poucos, poderiam demorar, mas iam começar a aparecer. É só ver essas matérias sobre o doping no Brasil, o documentário da tevê alemã. Ficou comprovado que minha urina foi trocada e tentaram de tudo para convencer as outras pessoas que de fui eu quem trocou a urina. Mas foram eles que trocaram", defende Rebeca, até hoje.

"É igual comparar a moça que roubou o peito de frango e o chocolate e teve a pena maior do que quem foi acusado na Lava Jato. A comparação é a mesma. A Justiça não existe. Existem pessoas que estão ali e que vão tomar decisão baseadas na influência. Quando seu processo cai na mão de uma pessoa que é vaidosa, aceita suborno ou é fácil de ser influenciada, você sabe que você vai ser punido ou não. Se pega alguém sensata, aí você acredita na Justiça", ataca.

(Orlando Kissner/AFP Photo)

Raiva – Impedida de voltar a competir, Rebeca se viu sem rumo. "A sua vida toda está em função daquilo e de repente tiram seu chão." Logo que tudo aconteceu, ela sofreu pela primeira vez de depressão. Recuperada, tentou jogar futebol, cogitou ser política e até participou do reality show A Fazenda, da Record.

"Parece que sempre tinha alguém tentando me prejudicar. Eu ia jogar bola porque aquilo me fazia bem, mas tinha alguém para não me deixar mais jogar bola. Me candidatei à política (recebeu 437 votos para deputada distrital em 2010), mas tinha quem quisesse me impedir porque fui expulsa da minha profissão. Sempre foi assim."

Uma hora, porém, todos aqueles sentimentos ruins acumulados se transformaram em uma profunda depressão. Em 2013, Rebeca tentou se matar bebendo veneno de rato, como ela contou em livro lançado durante a Olimpíada do ano passado.

"Fiquei em coma três dias. Quando eu voltei do coma, tive muita raiva de ter feito aquilo. Não sei o que aconteceu do outro lado. Voltei com muita raiva e falei: 'Não, quero superar isso'. Eu não tenho vergonha nenhuma de falar que eu tive depressão e tentei me matar. Na época eu tinha vergonha. Tenho vergonha de falar que eu atentei contra minha vida. Porque quando eu vejo uma notícia de pessoas lutando para viver e penso que tentei tirar o que a gente tem de mais precioso, sinto vergonha de mim. Só quem ta passando sabe como dói", relata.

Foto: Arquivo Pessoal/Facebook

Felicidade – Recuperada da depressão, Rebeca hoje é feliz de novo. "Demais de feliz", para sermos mais exatos. "Felicidade é algo que realmente a gente tem que buscar todos os dias. E hoje quando eu olho para trás, as coisas que eu lembro na época da natação, eu não era tão feliz como eu sou hoje. Sempre faltava alguma coisa. E hoje posso dizer que realmente não me falta nada."

Aos 32 anos, ela até voltou a nadar. Personal trainer, cai na água para acompanhar os alunos. Mas o maior prazer é participar das aulas de natação do pequeno Zeus, seu primeiro filho, que neste mês completa um ano de idade. "Ele nada desde os três meses. A natação ela é muito boa no sentido de você ficar mais tranquila quando for num clube, numa praia", argumenta. O garoto, porém, terá todo o incentivo possível para não ser um nadador.

Sobre o autor

Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.

Está disponível para críticas, elogios e principalmente sugestões de pautas no demetrio.prado@gmail.com.

Sobre o blog

Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.