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Olhar Olímpico

Para especialista, afrouxamento no controle antidoping manchou Brasil na Rio-2016

Demétrio Vecchioli

15/06/2017 04h00

Contratado pela Unesco e considerado um dos maiores especialistas do mundo controle de doping, o médico português Luis Horta ajudou na implantação da Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD). Desde julho do ano passado, porém, não pisa no Brasil. Diz temer pela sua segurança após receber pressão do Comitê Olímpico do Brasil (COB) para reduzir o número de exames-surpresa às vésperas dos Jogos Olímpicos do Rio. Foi embora, afirma, para ter sua dignidade preservada. Não participou do que acredita que ter sido uma mancha na campanha dos donos da casa na Rio-2016. "Voltamos novamente a ter aquela suspeição sobre o Brasil que eu senti antes de ir para a ABCD e que deixei de sentir quanto nosso trabalho foi implantado. É com tristeza que vemos as suspeições voltarem."

Morando em Portugal, ele não falava com a imprensa brasileira desde agosto do ano passado, quando, em entrevistas ao Lance!, reclamou da pressão que estava sentindo. No sábado, porém, ele voltou ao noticiário como uma das fontes do polêmico documentário do canal de tevê alemão ARD que revelou detalhes chocantes do esquema de doping no Brasil. Grande parte daquelas informações, porém, já constavam num dossiê sigiloso produzido por Horta e seu fiel escudeiro, o ex-presidente da ABCD Marco Aurélio Klein. Eles ouviram sete atletas, do ciclismo, do atletismo e da natação, todos flagrados em exame antidoping, em uma espécie de delação premiada – no controle de doping, o recurso é chamado "assistência substancial".

"Essas informações foram extremamente importantes para que fossem descobertas novas violações às regras antidopagem em diversas modalidades", revela Horta, alegando confidencialidade sobre o teor do dossiê e de suas consequências. "O que eu posso afirmar é que construímos um ótimo sistema de inteligência. Muitos dos controles que fazíamos, principalmente fora de competições, e mesmo dentro de competição, não eram feitos de forma aleatória. Eram controles direcionados. Nós consultávamos a lista de inscritos numa competição e confrontávamos com nossa lista de atletas suspeitos." Foi assim que, numa visita surpresa à seleção brasileira de ciclismo que ia disputar o Mundial Militar de 2015, a ABCD flagrou dois atletas com substâncias proibidas.

Horta foi embora há quase um ano e deixou para trás não apenas essa lista, mas também a de médicos suspeitos. Afinal, o médico ortomolecular Julio César Alves, protagonista do documentário da tevê alemã, é só o mais exibido deles. Há muitos outros receitando doping. " Temos uma longa lista de pessoas que eventualmente podem estar ligadas à estratégia de dopagem. Seria ridículo pensar que o problema está restrito a um único médico."

As informações apuradas foram foram levadas não só ao Ministério Público de São Paulo  (e de lá à Polícia Civil de São Paulo) e ao Conselho Federal de Medicina, mas também à Agência Mundial Antidoping (Wada), que já conhecia boa parte das denúncias feitas no documentário da TV alemã. De acordo com Horta, a grande novidade do material exibido no sábado é o tamanho do laboratório no Paraguai, que existe principalmente para abastecer o doping brasileiro: "Suspeitávamos que as drogas vinham de lá, mas não tínhamos ideia de que o laboratório fosse tão grande".

As federações internacionais de atletismo e ciclismo também foram avisadas ainda em 2015 sobre o dossiê. Após a delação de um ciclista, a União Ciclística Internacional (UCI) traçou um plano conjunto com a ABCD, que resultou numa caçada inédita no ciclismo brasileiro, principalmente sobre a equipe Funvic, principal do país, que teve cinco atletas flagrados em exames antidoping. Entre eles, Kleber Ramos, único brasileiro suspenso durante a Olimpíada.

De uma hora para a outra, o Brasil virou o campeão mundial em casos de doping no ciclismo, como mostrou o Olhar Olímpico em abril. Não que antes não houvesse doping. Antes não havia controle. "Quando a ABCD passou a existir, passou a testar atletas a qualquer hora e qualquer momento", explica Horta.

O português chegou ao Brasil como consultor contratado pela Unesco para tentar ajudar Klein a implantar um controle de doping centralizado e, principalmente, confiável. "O mundo não confiava no controle brasileiro. Falava-se que não havia uma estratégia, que não havia o que harmonizasse a luta contra o doping. Não havia um dispositivo legal para tratar os casos de dopagem."

Até então, cada confederação fazia (ou não) o controle antidoping da forma que bem entendia. E muitas delas não gostaram de perder o domínio sobre a situação. "Uma dessas confederações foi a CBDA (de desportos aquáticos). Houve momentos que nossa presença causou incômodo", diz Horta, elogiando, em contraponto, a colaboração da CBAt, do atletismo.

Mas os problemas iam além das confederações. As punições ao doping no Brasil costumam ser brandas, a ponto de virar rotina atletas de renome escaparem de punições sob a alegação de que houve contaminação cruzada de medicamento. "Isso foi uma das coisas que eu mais estranhei quando cheguei à ABCD. Passei a seguir de perto todos os procedimentos disciplinares juntos aos tribunais esportivos. Havia uma grande maioria de casos onde as decisões eram completamente incorretas", atesta Horta.

Ciente disso, a Wada exigiu que o Brasil criasse um tribunal antidoping único, que foi instaurado no começo deste ano, após superar a resistência dos STJD's das confederações. Horta não esperou para ver. Foi embora em julho, segundo ele, por decisão própria, depois que Marco Aurélio Klein soube de sua própria exoneração pelo Diário Oficial da União. Num momento de mudança de governo, o novo ministro do Esporte, Leonardo Picciani, resolveu dar a presidência da ABCD ao ex-judoca Rogério Sampaio, que segue no cargo.

"Previ que nada bom iria acontecer. Previ que aquilo que viria a se passar nos meses a seguir poderiam ferir minha dignidade pessoal e profissional", desabafa Horta, que diz não saber afirmar se era interesse do ministério que houvesse um afrouxamento do combate ao doping. "Mas eu sentia algo estranho. Cada vez que queríamos um oficial viajando para um exame surpresa, o ministério nos obrigava a anexar ao pedido o nome de quem ia ser controlado. Isso passou a acontecer quando a nova equipe do ministério entrou", diz.

Mas a maior reclamação de Horta desde que ele deixou o cargo é contra o Comitê Olímpico do Brasil. "Houve pressão pelo COB à ABCD sim, através do Marcus Vinicius Freire (então diretor-executivo de alto rendimento). Ele ligava, mandava mensagens de texto à ABCD. Reclamava sobre a grande quantidade de controles fora de competição que estavam sendo realizadas e quanto à possibilidade de os atletas acumularem falhas."

As reclamações de Marcus Vinicius não foram só por ligação. Ele chegou a fazer essas críticas em uma entrevista coletiva, alegando que os diversos exames-surpresa em um mesmo atleta num curto período de tempo atrapalhavam a preparação e causavam o risco de o atleta ser suspenso caso não fosse encontrado em três oportunidades num prazo de 12 meses. À época, o UOL ouviu de confederações que elas também estavam incomodadas com o rigor considerado exagerado.

Só que o que era para ser uma disputa de interesses virou uma briga pessoal. "Sempre tive ótima relação com o Marcus Vinicius. Conheço ele há muitos anos, sempre o tratei com muito carinho, muita diplomacia. Nada previa, no meu modo de ver, que houvesse uma reação como houve, com ele referindo-se à minha pessoa de forma pouco elogiosa, afirmando que meu único intuito era fazer tudo para ficar bem visto na Wada. Meu objetivo é a proteção dos atletas limpos. Eu queria dar uma garantia ao mundo de que nossas medalhas (do Brasil) eram limpas. Antes de eu ir para a ABCD, aquilo que eu ouvia no mundo da antidopagem não eram palavras muito elogiosas, mas uma enorme suspeita. Com todo o trabalho que nós fizemos, passamos a sentir que eramos respeitados internacionalmente", observa o ex-consultor da ABCD. As críticas de Marcus Vinicius podem ser lidas aqui.

Horta deixou o cargo em 2 de julho, a 32 dias do início da Olimpíada, num momento que o Brasil havia parado de testar seus atletas. A desculpa oficial é que o Laboratório Brasileiro de Controle de Dopagem (LBCD) foi declarado em não-conformidade em 24 de junho e não havia para onde os testes serem enviados sem licitação. "Há outros laboratórios que poderiam ser utilizados. Na lei da contratação pública há mecanismos que em situações excepcionais podem ser utilizados. Havia amostras que precisavam ser analisadas", reclama.

O LBCD foi novamente declarado em conformidade em 21 de julho, mas logo em seguida começou o "bloqueio olímpico", período em que ele só atenderia à Wada. Passada a Olimpíada e a Paraolimpíada, o LBCD ainda funcionou por dois meses até a ABCD ser declarada em não-conformidade com o código da Wada. A "suspensão" perdurou de novembro até abril, período em que novamente o controle antidoping no país parou.  Desde que voltou a funcionar, a ABCD tem feito barulho em grandes competições, como o Troféu Maria Lenk, da natação, e o Troféu Brasil de Atletismo, onde mais de 80 testes foram realizados.

Sobre o autor

Demétrio Vecchioli, jornalista nascido em São Roque (SP), é graduado e pós-graduado pela Faculdade Cásper Líbero. Começou na Rádio Gazeta, foi repórter na Agência Estado e no Estadão. Focado na cobertura olímpica, produziu o Giro Olímpico para o UOL e reportagens especiais para a revista IstoÉ 2016. Criador do Olimpílulas, foi colunista da Rádio Estadão e blogueiro do Estadão, pelo qual cobriu os Jogos do Rio-2016.

Está disponível para críticas, elogios e principalmente sugestões de pautas no demetrio.prado@gmail.com.

Sobre o blog

Um espaço que olha para os protagonistas e os palcos do esporte olímpico. Aqui tem destaque tanto os grandes atletas quanto as grandes histórias. O olhar também está sobre os agentes públicos e os dirigentes esportivos, fiscalizados com lupa.